Terá dito Oliveira,
conforme citado algures, que foi em resposta a uma sugestão de que
fizesse “um filme sobre a pobreza” que se lembrou de adaptar O
Gebo e a Sombra de Raul Brandão. A “pobreza”, e o seu tema
associado, o “dinheiro”, já tinham visitado, mais este do que
aquela, a sua antepenúltima longa, Singularidades de uma Rapariga
Loura (a partir de Eça, mas com a moeda convertida em euros); e
havia uma espécie de pobreza, a pobreza espiritual de um mundo falho
de imaginação, excessiva e tristemente real, no filme que se lhe
seguiu, O Estranho Caso de Angélica, onde tudo era tão cinzento que
o protagonista preferia a fantasia mórbida, mas mágica e
promissora, que vinha com o sorriso de uma morta. São dois filmes
excelentes, como excelente é O Gebo e a Sombra, que cruza estes
títulos anteriores: fala do dinheiro - “o dinheiro nunca se
perdoa”, frase escrita há quase um século, mas tão terrível
quando pronunciada aqui e agora, em Portugal 2012 - e da sua
escassez, mas também da irredimível pobreza de um mundo “aquém”,
de um mundo “encolhido”, que faz pensar imenso no Cavalo de Turim
de Tarr e no que teria acontecido àquele pai e àquela filha depois
de já não haver luz, nem espaço, nem nada.
Neste mundo dos pobres
tal como O Gebo e a Sombra o desenha, também não há luz (sempre na
penumbra, noites e dias sucedendo-se sem distinção) nem espaço
(tão exíguo que não permite mais do que uma meia dúzia de
posições de câmara diferentes). Mesmo se plasticamente é notável,
uma coisa belíssima: a fotografia de Renato Berta faz maravilhas com
a iluminação e com essa sombra em todos os sentidos omnipresente, e
não exageramos se dissermos que desde que o cinema se tornou assunto
essencialmente “digital” ainda não tínhamos visto uma imagem
assim, tão rica nas temperaturas e nas texturas, tão complexa na
própria organização e definição do espaço (aqueles planos em
que duas personagens dialogam de frente para a câmara, e há uma
terceira a ouvi-las na penumbra da profundidade de campo)-
A “sombra” de Gebo
(Michael Lonsdale), modesto e dúctil cobrador de uma empresa
qualquer, é o seu filho, desaparecido há oito anos, em busca de
outra vida para além da pobreza, mas presumivelmente também para
além da aceitação da pobreza como “moral”, que Gebo professa
dir-se-ia religiosamente (ele que diz que um homem pode ser honesto e
honrado, ou então “tentar enriquecer”). Essa sombra
materializar-se-á quando o filho (Ricardo Trêpa) torna a casa, pelo
tempo suficiente para se revelar - numa figura com o seu quê de
nietzscheano - a antítese moral do pai. Mais ainda do que o roubo, é
o seu discurso brutal, a rebentar qualquer moralidade, perante aquela
atónita plateia (a família e os vizinhos) de gente que tem na
pobreza um ideal de honradez, a cena mais impressionante e violenta
de todo o filme, anunciada pela gargalhada, “diabólica”, do
momento do seu regresso. Violenta também pela ambiguidade da sua
crítica à docilidade da pobreza e dos pobres (ele não vem só de
outra vida, traz também outra voz), ambiguidade reforçada ainda
pelo facto de a personagem ser interpretada por Trêpa, que tem sido,
de modo mais ou menos evidente consoante os casos, o “duplo” de
Oliveira dentro dos seus filmes. Mas a história do filme - que
termina no final do terceiro dos quatros actos da peça de Brandão,
e é genial que o faça - é a da transformação de Gebo na sua
própria sombra. O momento em que a policia chega é o único momento
em que a luz do sol penetra naquele tugúrio, e portanto o único
momento em que Gebo, de frente para a luz do sol, projecta uma
sombra. Torna-se nela, na dúvida, angustiante, paralisante (como o
“paralítico” que imediatamente imobiliza a imagem e se mantém
por grande parte do genérico de fecho), de que tudo terá sido
“inútil”, de que sempre foi pobre e podia não ter sido, de que
a pobreza pode ser uma mentira tão ilusória como a abastança, de
que havia talvez uma outra vida algures, para ele, para a mulher
(Claudia Cardinale), para a filha-nora (Leonor Silveira). É um final
terrível, terrificante - decididamente, nunca se sai a rir de um
filme de Oliveira.
Mas sorri-se bastante, ao
longo da hora e três quartos da sua duração. Pela delicadeza e
graça com que Oliveira condimenta a austeridade da sua
mise-en-scène, e pela delicadeza, em estado de graça, do seu
sexteto de actores - faltava mencionar Luís Miguel Cintra e Jeanne
Moreau, que chegam para saborear o gosto do saké, perdão, do café
quente, na maravilhosamente amena cena de conjunto que antecede o
trauma que por sua vez prepara a tragédia. A tragédia do bas fonds:
discutir-se-á se Brandão está mais próximo de Gorki do que
Oliveira está de Renoir, mas Gebo e a Sombra também lembra bastante
a adaptação do russo que o francês fez nos anos 30, Les Bas Fonds
e que Oliveira certamente viu - o seu filme parece que lhe
“responde”. Em todo o caso, um filme magnífico, um grandíssimo
Oliveira. Chapéu, Sr. Manoel.
LMO