Seria curioso averiguar, seriamente, os
efeitos que o tempo operou sobre Blowup,
um dos mais célebres, mas também um dos menos típicos, filmes de Michelangelo
Antonioni. Seria curioso, sobretudo, averiguar de que forma resiste Blowup num tempo em que algumas das
suas preocupações centrais se disseminaram por várias áreas criativas, com
particular incidência nas chamadas “artes da imagem” (que não tratam,
necessariamente, da imagem cinematográfica). O que há de mais forte em Blowup, ainda hoje (ou sobretudo hoje),
é a sensação de que o filme marca um momento decisivo: a história do fotógrafo
interpretado por David Hemmings pode simbolizar a história do momento em que o
homem olhou para uma imagem e percebeu que ela não dizia assim tanta coisa (nem
uma palavra, quanto mais mil) que ele pudesse perceber. O núcleo de Blowup é a história do confronto de um
homem com uma imagem, tomada na mais simples das suas dimensões, a da sua
materialidade – e tudo se perde, a dado passo, no mar de pontinhos pretos e
brancos que são a única dimensão verdadeiramente concreta, palpável, da
fotografia tirada por David Hemmings. Esses pontinhos, espécie de enorme
labirinto apenas potencialmente representativo, acabam por ser, na sua
“incontornável” verdade, a única verdade “incontornável” de qualquer imagem:
sim, isto é uma imagem, até que ponto ela pode funcionar como revelação da
realidade, eis o que permanece um mistério insolúvel. A trajectória fascinada e
obcecada da personagem de Hemmings pode funcionar, a este nível, como crónica
do momento em que se perdeu a espécie de “unidade primordial” entre uma imagem
e o seu referente, ou melhor dizendo, do momento em que se ganhou consciência
de quão ilusória era essa unidade. Noutros termos, é um pouco como naquelas
célebres fotografias de “fantasmas”, que depois de reveladas mostram qualquer
coisa que, em princípio, não devia “lá” estar.
O que aparece à personagem de
Hemmings é um desses fantasmas. Mas aparece onde, na fotografia ou apenas na
cabeça dele? Todo o filme tende para a confirmação de que o fantasma estava na
cabeça dele, pois a imagem, afinal, não prova nada. E os mimos que aparecem no
princípio do filme voltam no fim, com um simulacro de jogo de ténis, numa
aparente confirmação de que “it’s all in the mind” – resposta relativamente
apaziguadora para Hemmings, que até esboça um sorriso quando começa a ouvir o
barulho da bola de ténis que não existe. Não existe? Existe, existe: como muita
coisa o tenta explicar, desde os ensaios sobre a loucura aos ensaios de
Cronenberg sobre a “virtual reality”, não há nada de mais verdadeiro do que o
que acontece “in the mind”. De certa forma, o sorriso final de Hemmings é um
sorriso triunfante: ele tinha razão.
Se calhar nada disto é muito
“antonioniano”, se calhar nada disto são conclusões essenciais (ou sequer
pertinentes) numa integração de Blowup
na obra do cineasta italiano, e talvez tenham muito mais a ver com a história
original de Cortazar (mesmo que o filme altere substancialmente) em que o
argumento se baseia. Mas a verdade é que tudo isto se insere num contexto
bastante caro a Antonioni, enquanto formulação temática: a “alienação”. Não é
seguro que a costela moralista de Antonioni não tivesse pretendido, acima de
tudo, chegar a uma espécie de “crítica social” – “swinging London”, cidade da
moda em meados dos “sixties”, a juventude, os fenómenos “pop” da música à
própria fotografia, o confronto entre uma urbanidade mais ou menos espumante e
a dura realidade suburbana (o filme começa, não o esqueçamos, num ambiente
fabril). Se o era, o mínimo que se pode dizer é que a história de Cortazar lhe
forneceu uma maneira terrivelmente eficaz de o fazer. Vistas bem as coisas, há
alguma coisa mais vazia do que a vida de Hemmings, ou de que esta Londres que
em tantos planos parece pura e simplesmente desabitada? A futilidade reina em Blowup, por entre manequins e relíquias de idolatria "pop" (o pedaço da guitarra dos Yardbirds) , e o vazio cansado (que
aparece estampado nos olhos e no rosto de David Hemmings, esse actor que teve o
azar de não envelhecer tão bem como Terence Stamp) da personagem do fotógrafo
é, afinal, o terreno propício ao nascimento de outra alienação, provocada pela
fotografia que o obceca. Menos fútil? Nada o garante, bem pelo contrário – o
círculo terrível de Blowup fecha-se
nessa troca de uma alienação por outra. E é por isso que, no fim de contas, o
último plano do filme talvez não signifique mais do que a aquisição de uma
espécie de “sagesse” nihilista.
LMO