Bande à Part, rodado em 1964,
no meio do glorioso e fervilhante período 59/68 da obra de Godard, nem por isso
é tão conhecido como outros títulos godardianos dessa época. Muitos
comentadores tomam-no por um dos seus filme mais lineares, coisa que ele será
certamente, adaptando uma novela (Fool’s Gold de Dolores Hitchens) de cariz
policial sem se desviar muito de um eixo narrativo sólido. Também muitos o têm
na conta de um dos mais “felizes” filmes de Godard, e aí talvez já não seja tão
fácil concordar. É verdade que a “felicidade” é uma questão para as personagens
de Godard (para estas e para outras) e que o trio de protagonistas de Bande à
Part (Anna Karina, Claude Brasseur e Sami Frey) descobre uma via para ela
numa espécie de simplicidade muito directa – a questão é que o mundo em redor
pode ser demasiado complicado para pôr essa simplicidade em prática. O “mundo
em redor”, no caso, é uma Paris suburbana e irreconhecível (“western de
subúrbio”, definiu Godard o seu filme), invernal e chuvosa, filmada num preto e
branco sequíssimo, muito mais descarnado do que o preto e branco de À Bout de Souffle, por exemplo (o director de fotografia é o mesmo nos dois casos,
Raoul Coutard). À Bout de Souffle, de resto, vem ao caso pela evolução da intriga, e
parece quase citado através da personagem de Sami Frey, um “proto-Belmondo” com
quem Godard sonhava filmar o William Wilson de Poe. E mais do que À Bout de Souffle: não é que Godard passe em revista a sua obra até então, mas Bande à
Part faz confluir “lembranças” de filmes anteriores – o triângulo de Une Femme est une Femme, a interioridade feminina de Vivre sa Vie, o
território vazio e “des-marcado” de Les Carabiniers. Há mesmo “lembranças” da
própria “nouvelle vague”, do Truffaut de Jules e Jim ao Demy dos Parapluies de Cherbourg, citado quase em “private joke”. É também porventura o mais
anglo-saxónico dos filmes de Godard, logo a abrir numa sequência durante uma
aula de inglês onde são citados Thomas Hardy, Eliot e Shakespeare. Os
americanos, pelo menos, gostam muito de Bande à Part: Tarantino foi-lhe
buscar o nome para a sua casa de produção (A Band Apart), Hal Hartley
pilhou-lhe o número de dança que em Simple Men fez acompanhar de uma
canção dos Sonic Youth. Claro, não esqueçamos Anna Karina, filmada como uma
diva do mudo nalguns dos mais belos grandes planos femininos do cinema sonoro.
“Educada na grande e severa tradição das Asta Nielsen, Garbo e Pola Negri (é a
minha mulher e eu amo-a mas isso não altera a verdade)”, escrevia Godard sobre
Karina nessa altura. Bande à Part, e isto é tão certo como outra coisa
qualquer, é como os outros Godard/Karina: um documentário dele sobre ela.
Vinte anos depois Godard encontrou
para Je Vous Salue Marie a mulher mais parecida com Anna Karina que se pode
ver na sua obra. Chamava-se Myriem Roussel, tinha uma figura parecida, cabelo
moreno e franja equivalente para os padrões de beleza dos anos 80. OK, se
calhar é um exagero e não queremos seguramente fazer a psicanálise de Godard,
mas Roussel dá imensos ares a Karina. E, sobretudo, vive o desejo de ter um
filho com a mesma intensidade com que Karina o vivia em Une Femme est une Femme. Já tem é meio caminho andado: engravidou sem mácula, ela assim o diz
contra a incredulidade de todos. Chama-se Maria e a analogia é evidente. Foi o
bastante para lançar o escândalo, relativamente “global” mas, se bem se
recordam, com alguns episódios espectaculares vividos em Portugal. Mas o filme
“blasfemo” de Godard não é nada blasfemo, não é uma “redução” da Maria de há
2000 anos, antes uma “elevação” da Maria contemporânea. É Godard desesperado
por encontrar qualquer coisa de sagrado no quotidiano – e isso foi um tema dele
ao longo de todos os anos 80, “assim na Terra como no Céu”. E é assim que, em
grande parte, é preciso entender Je Vous Salue Marie: como um filme fascinado
pelo “mistério da criação”, pelo poder feminino de gerar vida. É isto que é o
“milagre”, e é isto que Godard observa com masculino espanto (como ele disse
uma vez, “os homens procriam, as mulheres criam – não é a mesma coisa”). E é
com igualmente masculino fascínio – isto é, sem eliminar a sensualidade, sem
ocultar o erotismo – que Godard filma a relação de Maria com o seu corpo
alterado pela gravidez ou, mais simplesmente, alterado pelo saber da gravidez.
Toda a sequência com Marie, encerrada no quarto com uma determinação
sacrificial de heroína bressoniana, filmada nalguns mais belos e pudicos planos
de nu de que há memoriam (e que Godard, por alusões várias, faz corresponder à
memória da pintura clássica), é absolutamente prodigiosa. Je Vous Salue Marie é um dos maiores Godards dos anos 80, porventura o maior até Nouvelle Vague,
no fim da década.
LMO