(Escrevi este texto para a revista online Lumière, em 2010, e nunca foi publicado em mais lado nenhum. Não fiquei muito contente com o texto, na altura, embora a uma releitura de doze anos depois ele me tenha parecido suficientemente aceitável para o recuperar e publicar aqui; do que gosto mais é das memórias adjacentes: de férias, na última vez que vi Manhattan, escrevi-o à mão na esplanada do Café Reggio em Greenwich Village. Por um par de horas fui um cliché do Woody Allen tornado realidade, e de todas as coisas que me falta ser ou fazer na vida, essa já não é uma delas).
CINEMA(S) DA HISTÓRIA
“- de quoi parle-t-il?
-
de cinéma”
(diálogo de Nouvelle Vague, 1990)
1- Como sempre (desde, pelo menos, “Week-End”) a primeira dificuldade de se ser contemporâneo de um filme de Godard está em identificar de que ponto do tempo se nos dirige ele. A priori, podemos apenas intuir com certeza que se trata de um ponto mais próximo da catástrofe do que aquele em que, seus espectadores, nos encontramos ou julgamos encontrar. É inútil julgar realisticamente este velho pessimismo apocalíptico - porque ele não é senão, em primeira instância, a verdade da poesia de Godard, ou a poesia da sua verdade, vivida “dangereusement jusqu’au bout”. E, como tal, incontestável, tão incontestável como as cores dos girassóis de van Gogh, a quem ninguém ousaria dizer “mas não, meu caro Vincent, olhe que esse amarelo, francamente, não está muito correcto”.
Tornou-se comum critica-lo por estar “desligado do mundo” - afinal nem usa a internet, como dizia numa entrevista recente. Efectivamente, mas como virtude, não como motivo de critica. Para ver claramente é preciso encontrar a distância certa, o ponto de vista com a abrangência suficiente para que se vejam não só as coisas mas o espaço entre elas. Isto é velho, vinha no “Pierrot le Fou”. Mas aplicado ao espaço mediático, ou ao espaço entre as coisas mediáticas - ou seja: mais ou menos tudo o que existe - exige-se um verdadeiro retiro. Para ver com clareza os seus contornos e o seu núcleo, Godard retira-se da imensa nuvem que é, agora mais do que nunca, esse espaço mediático, com a sua sobrecarga de imagens, palavras e sentidos que alegremente (con)fundiu tudo: o político, o estético, o publicitário, o jornalístico, o televisivo, o cinematográfico. Etc, etc, etc. Para ver claramente é preciso ver para além (por cima, por baixo) desta nuvem, deste ecran baço e espesso que bloqueia a visão em vez de dar a ver. Em inglês, a palavra “screen” tanto serve para designar um ecran como uma cortina (como em “smoke screen”, por exemplo), tanto serve para aquilo que mostra como para aquilo que esconde. Pensa-se nisto durante a primeira parte de “Film Socialisme”, a bordo do paquete, onde abundam os ecrans - os monitores de computador, de telemóvel, de máquinas de casino - e as cortinas, como a janela de vidro contra a qual uma rapariga repetidamente embate. A sugestão é que, efectivamente, tudo se tornou o mesmo: os ecrans são como cortinas que bloqueiam a circulação, simultaneamente definindo um “out”e um “in”. Pensar a nuvem mediática é impossível sem pensar o mundo e a organização do mundo que ela propõe, reflecte ou, no mínimo, beneficia. Isto preocupa Godard há anos, e “Film Socialisme” participa inteiramente nessa preocupação.
Godard desliga-se do mundo, portanto, para o poder (re)ligar. Montage mon beau souci. Comparar o que não foi feito para ser comparado - como se ouve em “Film Socialisme”, num dos vários ecos de coisas que Godard já disse ou fez dizer nos seus filmes. Montar é inventar uma nova maneira de ligar dois termos, sejam eles de que natureza forem (Godard aprendeu-o, possivelmente, com os programas de Langlois na Cinemateca). E por isso, através da montagem, mais do que um discurso sobre o mundo, ergue-se uma intervenção sobre ele, como que uma reconstrução (é o lado demiúrgico de Godard). Um combate? Sim, um combate: pode o cinema ainda ousar - e conseguir - religar o mundo de acordo com os nossos desejos?
2- Entra-se em “Film Socialisme” pela água. Esplendorosas imagens de mar e de (velhas) vagas. A água, claro, é um elemento fundador, aquele de onde veio (de onde vem) a vida. Mas esta água não é uma abstracção mítica, é a água do Mediterrâneo, mar fundador, mar de cujas margens brotou a “civilização ocidental” e, mais tarde, a ideia de “Europa”. Pela circulação (de ideias e de artefactos culturais, entre outras coisas) que permitiu, pela “polenização” que suscitou, o Mediterrâneo foi a “primeira Internet” do mundo. Não é seguro que Godard não queira que pensemos exactamente nisto, uma vez que a circulação - a comunicação - como já vimos a propósito dos ecrans, é um tema importante em “Film Socialisme”. O espaço aquático do Mediterrâneo e o espaço mediático da modernidade conjugam a velha preocupação godardiana: se não se produz um efeito (recíproco) entre as partes, se não existir uma verdadeira afectação, existe realmente “comunicação” ou tudo não passa de mero empastelamento, uma simples ocupação do espaço para confirmar que - tecnicamente - o processo funciona? A maneira singularmente desafectada com que os passageiros do cruzeiro vivem a viagem - mais concentrados nos ecrans, ou nos “gadgets” do casino, do que no mar ou nas cidades - é um dos elementos mais desolados de “Film Socialisme”: um retrato do empastelamento indiferenciado, que se por si justifica o inesperado modo - digamos, documental - com que Godard filma o interior do barco - uma “natureza morta”? - também explica porque é que, havendo embora “personagens”e figuras definidas (do criminoso de guerra a Patti Smith), são aqueles rostos e corpos anónimos, movendo-se numa “Metropolis” de lazer, os que persistem, no espírito do espectador, como uma verdade fundamental de “Film Socialisme”. E no entanto, tudo isto se move: a vastidão “imutável” do mar é também a medida do movimento, pelas imagens da espuma criada pelo avanço do barco. “E la nave va”: este navio talvez esteja para a Europa do princípio do seculo XXI como o de Fellini estava para a Europa do princípio do seculo XX. Esperamos, então, que a tragédia (essa irmã ateniense da democracia) aconteça. Mas nada, nem mesmo (seria difícil, no Mediterrâneo) um iceberg como o do Titanic. Eis o mais inesperado: por uma vez, Godard detém-se antes da catástrofe. Talvez seja ainda mais assustador assim.
Dessa metáfora (?) da Europa contemporânea passamos (em todo o segmento intermédio) a algo de aparentemente muito mais “local” - tão “local”como a estação de televisão regional (regio=reggio? ah, como Godard refina o calembour...) que é uma das suas protagonistas. Mas, na verdade, todo o segmento, que é estilisticamente o mais classicamente godardiano (a composição, a montagem, o bricabraque dos diálogos e do som, a presença dos actores no plano, a ocupação do campo e do fora de campo - tudo vem do Godard de 80, post-”Sauve qui Peut”), reverbera de ecos e implicações muito para além-fronteiras. Historia de um “petit commerce” ameaçado de extinção, não é evidentemente fortuito que esse “commerce” se baseie em automóveis e gasolina - pois assim se toca no problema económico que mais decidiu a geopolítica das últimas decadas. A “nuvem mediática” e - nemesis godardiana - a televisão são presenças “naturais”, mas mais significativas são a jornalista africana (em diálogos que trazem à memória certas passagens de “Week-End”), memória viva de um passado colonial cujas consequências as grandes (e pequenas) potências europeias prefeririam ignorar, e (primeira referência explicita ao “socialismo”?) o garoto com a t-shirt vermelha e a inscrição CCCP - talvez apenas “un enfant que joue à la Russie”, talvez um sinal da domesticação e “folclorização” da História em prol do seu apagamento - como quando Lemmy Caution, em “Allemagne Neuf Zero”, se perdia numa Alemanha “aplanada” (quer dizer, sem Leste nem Oeste) pela queda do muro. Estas questões voltarão, iluminadas ou obscurecidas, no terceiro segmento (1+1+1: o hegelianismo, para não dizer marxismo, de Godard), mas é preciso referir ainda a mais bela expressão deste entroncamento entre o particular e o geral contida no segundo segmento: o encontro entre o lama (animal “exótico”, animal “que vem de fora”) e o burro bressoniano. Aquele lama é o Balthasar para a era da globalização (e “pas par hasard”).
Na primeira parte já se tinha ouvido, num dialogo alusivo aos fonemas de Jakobson, que o som é inextricável do sentido. Afirmação sobre o cinema, bem entendido, em especial sobre o cinema de Godard (mesmo quando o som é “ruído”, e portanto ausência de sentido, como magistral e electronicamente explora essa primeira parte de “Film Socialisme”). Mas isto quer dizer também que a aparência das coisas contém já alguma da essência das coisas. E que, portanto, nas imagens do mundo está já contido algum do sentido do mundo. No seu terceiro andamento, “Film Socialisme” desagua numa pura questão cinematográfica. É o Godard das “Histoire(s) du Cinema”, ou o Godard do(s) cinema(s) da História, mestre montador que se apropria das imagens e dos sons criados por outros para, num exercício de magia (branca? negra? luz ou obscuridade?), provar pela enésima vez que a força do cinema residiu na maneira como ele soube (pode) conter o sentido do mundo, fazer corpo com ele, serem - o cinema e o século XX - “une histoire seule”. Todos estes fragmentos são fantasmas que se levantam - como a jornalista africana ou o miúdo da t-shirt soviética - em nome da História, ruinas visíveis de alguma coisa que aconteceu “dans le noir du temps”. Não como “testemunho” da Historia, mas como sua produção, activa e interveniente, memória que se joga contra o esquecimento fabricado pelos ecrans a bordo do paquete. Por isso, “Film Socialisme” e não, por exemplo, “Film Liberalisme”: em causa está a implicação, não a desimplicação, o gesto individual (de um homem ou de um filme) e o seu compromisso com um destino colectivo. Eisenstein, Rossellini, Godard.
“Film Socialisme” termina com uma legenda - “no comment” - sobre fundo negro. “Não-comentário”, mas também “não-imagem”. Não há imagem, logo também não há o que comentar. Ausência do cinema, escuridão tumular. Que caia a noite.