“Para além do mais, O Conformista é uma história sobre mim
e Godard (…) Eu sou Marcello e faço filmes fascistas
e quero matar Godard que é um revolucionário, que faz
filmes revolucionários e que foi meu professor”
(Bernardo Bertolucci,
1971)
A frase de Bertolucci que aqui deixámos em epígrafe pode parecer uma afirmação estranha ou até, mais do que isso, deslocada. Um olhar sobre o fascismo italiano construído a partir de um romance de Alberto Moravia – como pode O Conformista ser “uma história sobre mim e Godard”? O certo é que não é só uma “boca” de que Bertolucci se tenha lembrado a posteriori. Sibilinamente, como uma “private joke” que em 1970 se calhar só o próprio e os membros do seu círculo de relações pessoais poderiam compreender, há uma alusão a Godard no interior do filme. É quando explicam a Marcello a sua missão: entrar em contacto com um opositor do regime fascista, o Professor António Quadri, que foi professor de Marcello na universidade, conquistar a sua confiança e matá-lo na primeira oportunidade. Quadri vive exilado em Paris – e quer a morada quer o número de telefone da sua residência são, exactamente, a morada e o número de telefone do apartamento parisiense onde Godard vivia nessa época.
Evidentemente, a frase de Bertolucci começa com um “para além do mais”. Il Conformista é, conscientemente, um filme vivido em desejo de emancipação cinematográfica por parte de Bertolucci, operando a vários níveis uma ruptura com o que fora o seu cinema dos anos 60, o de La Strategia del Ragno ou de Partner. Se Bertolucci queria matar o seu “pai cinematográfico”, queria matá-lo “para além do mais”, ou “para além dos demais”. O trajecto de Marcello (fabuloso Jean-Louis Trintignant) tem qualquer coisa do de um anjo exterminador, aniquilando tudo à sua volta. Os pais, as mães, os amigos – e em última análise, a si próprio, quando na derradeira cena, na noite da demissão de Mussolini, nega tudo o que fora até então (um fascista, menos por convicção do que, naquilo que constitui a mais cruel observação de Il Conformista, por ser “normal” ser fascista na Itália de 30) e encontra a negação daquele que sempre pensara ser o momento decisivo da sua vida quando descobre que o motorista Lino (que Marcello pensava ter morto muitos anos antes, ainda adolescente), afinal está vivo. Tudo o que ele foi, tudo o que ele julgava ser, era afinal uma mentira. Discutiu-se muito o sentido dos planos finais de Il Conformista, Marcello, já depois da sua violenta catarse, sentado, silencioso, algures numa esconsa rua romana, acabando a fitar directamente a objectiva como se ao mesmo tempo a desafiasse e a interrogasse (de maneira, aliás, um pouco reminiscente do plano final de Jean Seberg no… À Bout de Souffle de Godard). No livro de Morávia a história continuava mais um pouco, Bertolucci preferiu cortar ali. Menos um fecho do que uma suspensão, como se apesar de tudo houvesse uma hipótese ainda para Marcello e toda aquela indefinição final correspondesse a um conta-quilómetros de novo no zero, fim de um caminho mas também possibilidade de recomeça. Se Bertolucci diz “Marcello sou eu” talvez seja nesse momento de vazio potencialmente libertador que a identificação faça mais sentido.
Fora estes aspectos relacionados com um discurso pessoal de Bertolucci, a outra coisa que sobressai em Il Conformista é a sua pintura de um mundo devastado. O sonho de Mussolini era ressuscitar o Império Romano, e dir-se-ia que Bertolucci sinaliza a decadência representada pelo mundo fascista (mesmo na sua pujança) a partir de alusões figurativas ao mundo romano. Se a arquitectura, nas sequências em Roma, joga naturalmente um papel, a família de Marcello, em sinal da sua absoluta falência, surge envolta numa imagem que remete para a Roma antiga. A mãe, pintada como se viesse do Satyricon de Fellini, filmada numa cama cheia de cães de estimação num quarto atravancado; o pai, louco, internado num asilo que se parece estranhamente com um anfiteatro romano e a que Bertolucci, nos planos mais artificialistas de todo o filme, atribui uma aura teatralizada.
E claro, Trintignant. Talvez
nunca ninguém o tenha dito assim, mas não é um exagero: é o maior actor do cinema europeu dos últimos cinquenta anos. O melhor plano de Il Conformista é-o por causa dele: a
sua expressão, o vazio do seu olhar, quando dentro do carro permanece
totalmente indiferente aos gritos da ensanguentada Dominique Sanda. É estreita
e indefinível a linha que separa o homem frio do homem covarde, o homem cínico
do homem impotente. E isso, que está por inteiro nesse plano, vindo de dentro dos olhos de Trintignant, talvez seja a
moral da história de Il Conformista
segundo Bertolucci.