I’d like to say “thank you” on behalf of the group and ourselves, and I hope we passed the audition.
(John Lennon, na última
frase do filme, a última frase dos Beatles)
Quando, em Janeiro de 1969, os Beatles entraram em estúdio para gravar canções para um álbum chamado Let It Be ao mesmo tempo em que se deixavam filmar para um filme homónimo, estavam já, enquanto grupo, presos por arames. Ocuparia demasiado espaço explicar porquê, e de qualquer modo sobre o assunto a bibliografia é vasta. Havia várias tensões entre os membros do grupo, provocadas, resumidamente, pelo aprofundamento de “clivagens idiossincráticas” (mormente entre John Lennon e Paul McCartney), pela crescente importância das vidas pessoais de cada um deles (John trazer Yoko para o estúdio não era uma coisa bem vista pelos outros, mas o certo é que em Let It Be também vemos a família de Paul McCartney), pelos problemas advindos dos erros de gestão da sua aventura empresarial (a Apple Corps, de resto a entidade produtora do filme). Ou, de maneira ainda mais resumida, os Beatles estavam cansados de serem os Beatles, algo também confirmado pelo cada vez maior envolvimento deles em projectos musicais pessoais e à margem do grupo.
Let It Be, sendo uma espécie de “última valsa” dos Beatles, tem este interesse acrescido. Concebido ainda como veículo celebratório do grupo, acabou por documentar, se não o fim dos Beatles, alguma coisa que já vinha de trás e que se pode identificar hoje, muito concretamente, como o “princípio do fim”. O facto de sabermos que quando o filme se estreou o grupo já se tinha efectivamente dissolvido lança uma sombra sobre tudo o que vemos em Let It Be (que, no entanto, não documenta a derradeira reunião dos Beatles em estúdio, visto que no Verão desse ano de 1969 ainda gravariam Abbey Road, que seria editado antes da saída do Let It Be filme e do Let It Be álbum). Se toda a gente olha para Let It Be à procura de “premonições”, e as encontra com a facilidade que a retrospectiva sempre permite (nos desentendimentos, como na célebre discussão entre Paul e George, ou na distância entre Paul, cada vez mais “líder”, e John, cada vez mais longe, sendo um facto curioso eles não aparecerem assim tantas vezes dentro do mesmo plano), talvez a mais estarrecedora metáfora (que só pode ser um acaso, mas nunca fiando) seja aquele breve plano, ainda no início, em que por cima do piano de Paul McCartney vislumbramos uma maçã, igualzinha ao logótipo da Apple que aparecia nos discos dos Beatles, mas… toda roída. Talvez seja a mais singela, mas mais eficaz, imagem para o fim dos Beatles: não havia, simplesmente, mais por onde roer.
Outra ironia é que a própria produção do filme acentuou o desconforto entre o grupo. Por obrigações de rodagem, os Beatles trocaram de horários e começaram a encontrar-se no estúdio às primeiras horas daqueles dias do Inverno londrino, em vez das sessões nocturnas a que estavam habituados. Há no filme (nas roupas, por exemplo) uma presença do frio, meteorológico, que também não está longe de ser um elemento catalisador de uma frieza mais metafórica mas igualmente palpável. E ainda nesta perspectiva “simbólico-premonitória”, como não ver a escolha do telhado da própria “casa” dos Beatles (os escritórios da Apple, em Savile Row) para lugar do seu derradeiro concerto como mais um sinal, um sinal de que os Beatles já não estavam dispostos a ir muito longe por si próprios, e pelo contrário apenas tão perto quanto possível?
Tudo isto é certo, e está mais ou menos inegavelmente contido no filme. Mas também estão outras coisas, e num filme que passou à história como o documento da “morte dos Beatles” talvez o mais entusiasmante seja descobrir o modo como ele captou a “vida” que ainda havia. Não é só o (fenomenal) concerto do telhado que ocupa os derradeiros vinte minutos do filme, são todos aqueles momentos, quase “back to basics”, em que a música toma conta de Paul, John, George e Ringo e se percebe que ali ainda resistia qualquer coisa, que ainda podia haver uma “jouissance” (e até os “ad libs” de John parecem uma coisa entusiasmada, não simples expressões de um “detachment” eventualmente cínico).
E para além da “beatle-iana”, que
interesse tem Let It Be? Diríamos
que mais do que estávamos à espera. Por feliz coincidência, boa parte do mais
interessante cinema documental moderno seguiu por caminhos semelhantes aos
tomados por Michael Lindsay-Hogg: imersão numa realidade estrita e definida,
ausência de explicações e de comentários evidentes, opção pelo “fragmento” e
pelo “descontínuo”, pelo anedótico e pelo aparentemente não-essencial, por uma
montagem que “decompõe” tanto quanto “aproxima” – para chegar a um retrato (de
grupo, propriamente) que palpita de justeza e credibilidade. Seja em que
contexto for, Let It Be não faz nem
fará má figura.
LMO