sexta-feira, 9 de julho de 2021

La Collectionneuse, Eric Rohmer, 1967

 

Como se sabe, Eric Rohmer definiu a série dos Contos Morais (de que La Collectionneuse é o quarto filme) como algo em que era menos importante aquilo que se passava do que o modo como as personagens (ou uma de entre elas) descreviam aquilo que se passava. “Mon intention n’était pas de filmer des événements bruts, mais le récit que quelqu’un faisait d’eux”. E consequentemente, o mais importante passa-se, acrescentava Rohmer, “dans la tête du narrateur”.

La Collectionneuse é um excelente exemplo do que isto quer dizer, e igualmente um excelente exemplo de tudo o que um tal princípio permite a Rohmer. Tudo funciona a partir de uma décalage: filmar o récit produzido pelo narrador não quer dizer que apenas vejamos esse récit, nem que o carácter real (“brut”) dos acontecimentos descritos possa ser posto em causa. O que vemos não é “imaginado”, não há razão para crer que, a esse nível, haja qualquer confusão entre o objectivo e o subjectivo. O que há, num procedimento que Rohmer utilizou variadíssimas vezes (em quase toda a série das Quatro Estações, para ficarmos por aí), é a criação de um efeito de mecânica cómica, gerado (e gerada, a mecânica) pelo simples facto de vermos e ouvirmos, de no mesmo plano coexistirem o “événement brut” e o “récit”, o objectivo e o subjectivo, a acção e a reflexão (ou a justificação). E, por cima disso, o facto, sumamente perverso, de o ponto de vista da câmara não corresponder ao do narrador – este tem poder sobre o microfone, não sobre a máquina de filmar (porque se tivesse, aí sim, poderíamos falar num nível imaginário, numa subjectividade da imagem). Por muito que conceda a palavra ao seu “narrador” (aqui, Patrick Bauchau), Rohmer não abdica de ser, ele próprio, uma espécie de narrador escondido, que guarda para si próprio a “última palavra”, metaforicamente proferida sem recurso a qualquer oralidade – apenas “mise en scène”, ângulos de câmara, escolha dos planos. Um exemplo? Toda a sequência final de La Collectionneuse, quando Bauchau deixa Haydée para trás e o seu monólogo em “off” refere em tons quase épicos que esse acto significou para ele “uma liberdade exercida na sua plenitude”, fala da solidão escolhida para o resto das férias, evoca, entusiasmado, “a total disponibilidade de si”. E o que é que vemos, depois? Uma espécie de anti-climax: Bauchau espreitando pela janela da vivenda, Bauchau deitado na cama, Bauchau vagueando pelo jardim, Bauchau, em suma, sem saber como ocupar o seu tempo. Até que, no plano final, sem qualquer “aviso” ou explicação do Bauchau narrador, o vemos a pegar no telefone e a perguntar às informações do Aeroporto de Nice a que horas há voos para Londres, “naquele mesmo dia”.

No seu livro (edição dos Cahiers du Cinema) sobre o cineasta, Pascal Bonitzer escreve a dado passo que as personagens de Rohmer “agem como se tivessem lido em demasia, e acabam por julgar ser outras pessoas”. Há, de facto, uma dimensão de heroísmo auto-reivindicado nas personagens de Rohmer, como se eles acreditassem – quando escolhem a renúncia, quando escolhem a privação, quando se dedicam ao prazer – haver em qualquer das suas escolhas ou dos seus actos um sinal da sua própria “superioridade moral”; a posteriori, há sempre uma justificação de teor filosófico-moral para o mais simples dos seus gestos, há sempre – mesmo, ou sobretudo, quando os comportamentos são erráticos e ao sabor das circunstâncias – uma tentativa de inclusão de qualquer acção num quadro de premeditação e estratégia (como se as personagens estivessem, de facto, a escrever o romance, o récit, da suas próprias vidas). Em La Collectionneuse, quando finalmente Bauchau parece disposto a ceder ao (evidente, para todos menos para ele) desejo que sente por Haydée, escuda-se na premeditação de “uma história estritamente balizada no tempo e no espaço”, que para ele significa o cúmulo da aventura, “a aventura absoluta”.

Essa questão, a do desejo e da sua justificação racional, está sempre presente no cinema de Rohmer, com especial acuidade nos Contos Morais e em particular neste filme – cuja “intriga” se poderia resumir à atracção que dois amigos sentem pela mesma rapariga e aos esforços que fazem, entre eles e para si próprios, para a negar. São duas personagens em constante representação, numa verdadeira “mise en scène” da negação (veja-se Daniel no seu número de teatro a insultar Haydée, ele que fora sensível, no princípio do filme, à conversa sobre a “elegância” e sobre a preocupação, supostamente em desuso, com a imagem de si que um indivíduo projecta perante os outros). Numa entrevista a propósito de outro filme, Rohmer citou um antigo professor seu que costumava dizer que “o inconsciente é o corpo”; de certa maneira, La Collectionneuse é um filme sobre isso, sobre a impossibilidade racional de dominar o que é da ordem do irracional. Mas essa impossibilidade é o que nós, espectadores, vemos, e neste caso é o que Haydée parece saber; até prova em contrário, as personagens de Bauchau e Pommereulle continuarão, até muito depois do filme, a viver a ilusão do seu próprio “récit”.

LMO