Como
se sabe, Eric Rohmer definiu a série dos Contos
Morais
(de que La
Collectionneuse
é o quarto filme) como algo em que era menos importante aquilo que
se passava do que o modo como as personagens (ou uma de entre elas)
descreviam aquilo que se passava. “Mon
intention n’était pas de filmer des événements bruts, mais le
récit
que quelqu’un faisait d’eux”.
E consequentemente, o mais importante passa-se, acrescentava Rohmer,
“dans
la tête du narrateur”.
La
Collectionneuse é
um excelente exemplo do que isto quer dizer, e igualmente um
excelente exemplo de tudo o que um tal princípio permite a Rohmer.
Tudo funciona a partir de uma décalage:
filmar o récit
produzido pelo narrador não quer dizer que apenas vejamos esse
récit,
nem que o carácter real
(“brut”) dos acontecimentos descritos possa ser posto em causa. O
que vemos não é “imaginado”, não há razão para crer que, a
esse nível, haja qualquer confusão entre o objectivo e o
subjectivo. O que há, num procedimento que Rohmer utilizou
variadíssimas vezes (em quase toda a série das Quatro
Estações,
para ficarmos por aí), é a criação de um efeito de mecânica
cómica, gerado (e gerada, a mecânica) pelo simples facto de vermos
e ouvirmos,
de no mesmo plano coexistirem o “événement brut” e o “récit”,
o objectivo e o subjectivo, a acção e a reflexão (ou a
justificação). E, por cima disso, o facto, sumamente perverso, de o
ponto de vista da câmara não corresponder ao do narrador – este
tem poder sobre o microfone, não sobre a máquina de filmar (porque
se tivesse, aí sim, poderíamos falar num nível imaginário, numa
subjectividade da imagem). Por muito que conceda a palavra ao seu
“narrador” (aqui, Patrick Bauchau), Rohmer não abdica de ser,
ele próprio, uma espécie de narrador escondido, que guarda para si
próprio a “última palavra”, metaforicamente proferida sem
recurso a qualquer oralidade – apenas “mise en scène”, ângulos
de câmara, escolha dos planos. Um exemplo? Toda a sequência final
de La
Collectionneuse,
quando Bauchau deixa Haydée para trás e o seu monólogo em “off”
refere em tons quase épicos que esse acto significou para ele “uma
liberdade exercida na sua plenitude”, fala da solidão escolhida
para o resto das férias, evoca, entusiasmado, “a total
disponibilidade de si”. E o que é que vemos, depois? Uma espécie
de anti-climax: Bauchau espreitando pela janela da vivenda, Bauchau
deitado na cama, Bauchau vagueando pelo jardim, Bauchau, em suma, sem
saber como ocupar o seu tempo. Até que, no plano final, sem qualquer
“aviso” ou explicação do Bauchau narrador, o vemos a pegar no
telefone e a perguntar às informações do Aeroporto de Nice a que
horas há voos para Londres, “naquele mesmo dia”.
No
seu livro (edição dos Cahiers
du Cinema)
sobre o cineasta, Pascal Bonitzer escreve a dado passo que as
personagens de Rohmer “agem como se tivessem lido em demasia, e
acabam por julgar ser outras pessoas”. Há, de facto, uma dimensão
de heroísmo auto-reivindicado nas personagens de Rohmer, como se
eles acreditassem – quando escolhem a renúncia, quando escolhem a
privação, quando se dedicam ao prazer – haver em qualquer das
suas escolhas ou dos seus actos um sinal da sua própria
“superioridade moral”; a posteriori, há sempre uma justificação
de teor filosófico-moral para o mais simples dos seus gestos, há
sempre – mesmo, ou sobretudo, quando os comportamentos são
erráticos e ao sabor das circunstâncias – uma tentativa de
inclusão de qualquer acção num quadro de premeditação e
estratégia (como se as personagens estivessem, de facto, a escrever
o romance, o récit,
da suas próprias vidas). Em La
Collectionneuse,
quando finalmente Bauchau parece disposto a ceder ao (evidente, para
todos menos para ele) desejo que sente por Haydée, escuda-se na
premeditação de “uma história estritamente balizada no tempo e
no espaço”, que para ele significa o cúmulo da aventura, “a
aventura absoluta”.
Essa
questão, a do desejo e da sua justificação racional, está sempre
presente no cinema de Rohmer, com especial acuidade nos Contos
Morais
e em particular neste filme – cuja “intriga” se poderia resumir
à atracção que dois amigos sentem pela mesma rapariga e aos
esforços que fazem, entre eles e para si próprios, para a negar.
São duas personagens em constante representação, numa verdadeira
“mise en scène” da negação (veja-se Daniel no seu número de
teatro a insultar Haydée, ele que fora sensível, no princípio do
filme, à conversa sobre a “elegância” e sobre a preocupação,
supostamente em desuso, com a imagem de si que um indivíduo projecta
perante os outros). Numa entrevista a propósito de outro filme,
Rohmer citou um antigo professor seu que costumava dizer que “o
inconsciente é o corpo”; de certa maneira, La
Collectionneuse
é um filme sobre isso, sobre a impossibilidade racional de dominar o
que é da ordem do irracional. Mas essa impossibilidade é o que nós,
espectadores, vemos, e neste caso é o que Haydée parece saber; até
prova em contrário, as personagens de Bauchau e Pommereulle
continuarão, até muito depois do filme, a viver a ilusão do seu
próprio “récit”.
LMO