Memoirs of an Invisible Man é, em toda a sua obra, o filme de que
John Carpenter mais mal diz. Mesmo para os seus grandes falhanços (grandes
falhanços na bilheteira, entenda-se) do princípio dos anos 80, que o tempo
tornou em “beautiful losers”, Carpenter só tem, regra geral, palavras de
estima. Com este, que marcou um regresso aos grandes estúdios (a Warner
Brothers) e pôs fim ao período de inactividade excepcionalmente longo (quatro
anos) que se seguiu a They Live
(batido depois pelo período entre Ghosts
of Mars, de 2001, e The Ward, de 2010, descontando os dois episódios
para a série de televisão Masters of
Horror), com este filme, dizíamos, Carpenter não é nada meigo. Como se
confere, por exemplo, na entrevista publicada no catálogo editado pela Cinemateca, onde Carpenter
verbera as interferências constantes da sua estrela, Chevy Chase (não creditado
como produtor mas, a julgar pelas palavras de Carpenter, com uma palavra
determinante sobre os destinos do filme), e lamenta especialmente a imposição
de uma narração em “off” com que nunca concordou (“detesto a voz ‘off’”).
É verdade, e arrumemos já com
este assunto, que a voz “off” é banal, resquício de um tipo de cinema, e em
particular de um tipo de comédia americana muito “anos 80”, muito “Saturday
Night Live” e similares (que é o meio de onde emergiu Chevy Chase), muito
verborreica, que tem pouco ou nada a ver com o cinema de John Carpenter. E que
não acrescenta, de facto, nada de muito significativo ao filme, nem sequer à
composição da personagem interpretada por Chase (que se chama Nick Halloway,
num mais que certo trocadilho com a quase homófona palavra “hollow”, em
português, “vazio”, “por preencher”). Mas é igualmente verdade que o filme não
é danificado pela presença da voz “off” (esquecemo-nos dela rapidamente, e
terminado o filme lembramo-nos de tudo menos da voz “off”), e que ela, até nas
suas irrupções extemporâneas, dá uma outra dimensão ao conflito central do
filme: a luta de um homem contra o seu apagamento. Podemos facilmente integrar
a presença da sua voz no mesmo processo de “resistência”; assim como, a partir
das palavras de Carpenter sobre a sua relação com Chase, se abre uma dimensão
interessante, como que “comentadora” do próprio processo de feitura do filme.
Chase queria sobressair, fazer filmes “mais sérios” (Carpenter dixit) do que as
suas comédias habituais, e escolheu um filme sobre um homem invisível? Ironia,
mas Chase não a quis levar até ao limite – e na intermitência (que às vezes
parece um pouco aleatória) da sua visibilidade para o espectador (sendo certo
que para as outras personagens ele é sempre invisível), no seu próprio desejo
de não ser apagado, joga-se porventura um conflito entre a vedeta e o
realizador. E assim é bem possível que Memoirs
of an Invisible Man se converta inesperadamente naquele tipo de filmes que,
como Jacques Rivette gosta de dizer, são em simultâneo “a reportagem da sua
rodagem”.
Se este conflito parecerá
anedótico, não deixa de ser um curiosíssimo eco do conflito narrativo do filme.
Muita gente viu Memoirs of an Invisible
Man como um filme, em última análise, sobre os efeitos especiais, sobre a
imposição do “digital” e a sua lógica de apagamento do actor e do elemento
humano. Certamente que sim, e nesse sentido ainda um prolongamento de They Live: é entre as grandes
corporações e os grande poderes estatais, a CIA mais propriamente, que se jogam
os infortúnios de Nick Halloway, ele próprio saído de um universo (um pouco
“yuppie”, de um elitismo vulgar, passe o pleonasmo) que Carpenter nunca tratou
muito bem (vide o tratamento inicial da personagem, e depois o dos seus
supostos “amigos”, que com a excepção de Daryl Hannah são uns perfeitos
imbecis). Mas a esse respeito seria interessante assinalar que Carpenter, mesmo
para comentar o “digital”, se serve dele “a contrario”: pensando que o digital,
por norma, serve para acrescentar alguma coisa à imagem, depositar-lhe alguma
coisa que não estava lá ou transformar os corpos dos actores, o que vemos em Memoirs of an Invisible Man é o digital
usado como subtracção, como algo que devia
lá estar (na imagem) mas não está. É o próprio digital que se torna
“invisível”.
E por isso, se se tornam notados
(cf. ainda a entrevista do Catálogo) os
dispositivos ópticos que forçam a revelação do corpo de Halloway (em espécie de
metáfora do cinema, que como diz Carpenter “deve fazer aparecer o invisível”),
mais notada ainda devia ser a belíssima sequência em que Daryl Hannah, usando
rudimentares processos (os batons, cremes e pós de beleza), consegue criar
algum tipo de permanência ao rosto de Halloway. Se o digital tornou tudo
invisível, e se fez ele próprio invisível, é a maquilhagem (o mais velho
truque, a mais velha ilusão do mundo: o teatro) que salva o rosto da personagem
– e se o rosto é a porta da entrada para a alma esse salvamento é tudo o que
Chevy Chase precisa para que Hannah, apaixonando-se, lhe salve também a alma.
Talvez seja o que de mais profundo e mais belo Memoirs of an Invisible Man contém em termos de discurso sobre o
“digital” e sobre o cinema.
John Carpenter, “cineasta
analógico num mundo digital”: este é o filme que mais validade dá a esta
célebre expressão.
LMO