Histoire de Marie et Julien
de Jacques Rivette
De História de Marie e Julien se tem dito que é um “filme-fantasma”. E com razões para serem levadas à letra: a génese do filme é antiga, vem de meados dos anos 70 e de uma ideia de “série” (a que Rivette chamava as “cenas da vida paralela”) que deveria ter quatro filmes e teve apenas dois (Duelle e Noroît). Nessa altura, em 1975 mais precisamente, Rivette chegou a iniciar a rodagem de História de Marie e Julien (ou pelo menos, a rodagem do argumento que então existia), com um estranho “cast” composto por Albert Finney e Leslie Caron, mas abandonou-a dois dias depois de começar, entre angústias criativas e uma crise pessoal. Por isso se tem dito, com estas boas razões, que estamos perante um “filme-fantasma”: porque é um filme que “volta”, quase 30 anos depois de uma aparente morte prematura, e porque, como algo iniciado e nunca terminado, “unfinished business” (como o de tantos fantasmas de cinema), nunca deixou de pairar no espírito do próprio Rivette (íamos escrever “como uma assombração”, mas é demasiado óbvio). Ei-lo então, o “filme-fantasma”, retrabalhado a partir do “cadáver” deixado em 1975 (leia-se: o argumento e as indicações concebidas na altura) por Pascal Bonitzer e Christine Laurent, fiéis colaboradores de Rivette desde há cerca de 20 anos.
Foi no número dos “Cahiers du Cinéma” onde se destacou História de Marie e Julien que se lembrou uma velha frase de Rivette – “um filme é, antes do mais, a reportagem da sua rodagem” – para justificar o arranque do filme. Muito justamente: é por um sonho que o filme começa, e esse sonho reproduz (vejamos as coisas assim) como um preâmbulo aquela que será, logo a seguir, a “primeira cena” do filme, o reencontro entre Marie (Emmanuelle Béart) e Julien (Jerzy Radziwilowicz). Julien sonha com o reencontro, Julien reencontra; mutatis mutandis, é também Jacques que sonha e Jacques que reencontra. A assombração tem duplo sentido, este filme recebido “em legado” do mundo dos mortos faz escala no mundo dos sonhos antes do regresso à terra. Muito convenientemente para um “filme-fantasma”, é também um “filme de fantasmas”, não por acaso – é a abertura que logo o indica – instalado nessa zona de fronteira que é a agitada terra onírica. Para o filme – o lado “reportagem da sua rodagem” – tratar-se-ia de lhe escapar, de se confirmar enquanto objecto material, palpável; para as suas personagens, para Marie sobretudo, a questão é semelhante. E mais uma vez para levar à letra: ou não pede ela a Julien que “não a deixe adormecer”, essa frase que, mau grado muito boa gente não resistir a evocar Shyamalan a propósito deste filme, poderia vir intacta do Pesadelo em Elm Street do mal amado Wes Craven?
Não que Rivette “cite”, como é óbvio. Nem Shyamalan nem Craven, nem mesmo Hitchcock (Vertigo) ou Dreyer (Ordet), outras lembranças que ocorrem com frequência. Está certo, são histórias de mortos, de mortos-vivos e vivos-mortos, mas são projecções que vêm mais duma cabeça de espectador cheia de filmes do que projecções do próprio filme. Rivette evoca, mais do que cita, e evoca, sobretudo, “matrizes”: em entrevista afirmou, por exemplo, “que se não tivesse medo de soar demasiado pretensioso teria intitulado o filme de ‘Lenda de Marie e Julien’, como ‘Lenda de Tristão e Isolda’”. No filme será o universo de Poe a evocação mais explícita, de histórias como a de Ligeia a maldições como a dos Usher, histórias de mulheres e fantasmas, pesadelos e vigílias, cenários de mausoléu. Sobretudo, histórias de amores post-mortem: o primeiro verdadeiro sobressalto do filme é quando nos é apresentado um gato cor de corvo chamado “Nevermore”. Não é bem citação, é sobretudo sinalização, “pista de leitura”, um holofote lançado sobre o romantismo excessivo e tumular, um gatilho para a “mórbida agudeza dos sentidos”: peguem no brilho negro do pelo do gato, parece dizer Rivette, é esta a luz do meu filme.
Todo o “fantástico” de História de Marie e Julien vem daí, desse confronto entre o palpável e o imaginável, maldito ou bendito. Território bem “rivettiano”, o dum “fantástico” gerado por uma imensidão de falsas pistas (algumas são verdadeiras) tendentes a conduzir a imaginação do espectador por caminhos que só ele, espectador, saberá que seguiu e por que os seguiu. Há “intriga” em História de Marie e Julien, e faltava falar da personagem da “Madame X”, mulher detentora de chaves importantes para o desmanchar da intriga. Mas Rivette, sempre “langiano”, adepto de complots, conspirações e sociedades secretas – e de “segredos terríveis” como em Poe – diverte-se a multiplicar ecos da própria intriga, a sugeri-la muito maior e muito mais complexa, a inventar rituais (Béart a recitar uma lengalenga numa língua incompreensível) que, damos por nós a pensar, quase se aproximam da auto-paródia (ou da auto-citação, em todo o caso, e é o ponto onde nos ficam mais dúvidas). Quando, no fundo, a história não é assim tão complicada: é uma história de amor entre Marie e Julien, enquadrada por um segredo de facto “terrível” (mas para o descobrir é preciso ver o filme).
Mas outra conversa é possível. Esta, por exemplo, que se refere (outro aspecto suficientemente notado) à presença do sexo (do sexo explícito, entenda-se) no cinema de Rivette, porventura pela primeira vez – e “assim”, como aqui, de certeza pela primeira vez. O que é importante aí nem é bem o sexo, mas o que ele implica, sobretudo em termos de figuração (e de representação, num sentido mais amplo) de uma intimidade, e em particular de uma intimidade entre os protagonistas masculinos de Rivette e as mulheres. De mulheres está o cinema de Rivette cheio, tantas vezes como protagonistas e em grupo (La Bande des Quatre, Alto, Baixo, Frágil, dois exemplos relativamente recentes); mas são sempre criaturas fugidias, não necessariamente altivas mas sempre esquivas, “resistentes” tanto aos homens-personagem como ao “homem- câmara” – o cinema de Rivette, numa certa perspectiva, é a “reportagem” de um longuíssimo combate pelo acesso a uma intimidade, que passa pelo corpo certamente, mas onde ele é, como o sonho do início de História de Marie e Julien, uma mera “etapa”. Às incertezas desse combate, que faz de um “plateau” ou, no limite, de um plano, um “ring” imaginário, já Rivette dedicou um filme por inteiro, A Bela Impertinente. Reencontra aqui, e não é, não pode ser, um acaso, a sua protagonista desse filme, Emmanuelle Béart – e se há coisa que as cenas de sexo aqui evocam são as sessões de pintura de A Bela Impertinente, as coreografias e as poses, o “aprisionamento” e a “fuga”, a fixação e a mobilidade. Coisas que têm tudo a ver com o pequeno ensaio sobre a carne de que são feitos os fantasmas que História de Marie e Julien acaba por ser.
Foi no número dos “Cahiers du Cinéma” onde se destacou História de Marie e Julien que se lembrou uma velha frase de Rivette – “um filme é, antes do mais, a reportagem da sua rodagem” – para justificar o arranque do filme. Muito justamente: é por um sonho que o filme começa, e esse sonho reproduz (vejamos as coisas assim) como um preâmbulo aquela que será, logo a seguir, a “primeira cena” do filme, o reencontro entre Marie (Emmanuelle Béart) e Julien (Jerzy Radziwilowicz). Julien sonha com o reencontro, Julien reencontra; mutatis mutandis, é também Jacques que sonha e Jacques que reencontra. A assombração tem duplo sentido, este filme recebido “em legado” do mundo dos mortos faz escala no mundo dos sonhos antes do regresso à terra. Muito convenientemente para um “filme-fantasma”, é também um “filme de fantasmas”, não por acaso – é a abertura que logo o indica – instalado nessa zona de fronteira que é a agitada terra onírica. Para o filme – o lado “reportagem da sua rodagem” – tratar-se-ia de lhe escapar, de se confirmar enquanto objecto material, palpável; para as suas personagens, para Marie sobretudo, a questão é semelhante. E mais uma vez para levar à letra: ou não pede ela a Julien que “não a deixe adormecer”, essa frase que, mau grado muito boa gente não resistir a evocar Shyamalan a propósito deste filme, poderia vir intacta do Pesadelo em Elm Street do mal amado Wes Craven?
Não que Rivette “cite”, como é óbvio. Nem Shyamalan nem Craven, nem mesmo Hitchcock (Vertigo) ou Dreyer (Ordet), outras lembranças que ocorrem com frequência. Está certo, são histórias de mortos, de mortos-vivos e vivos-mortos, mas são projecções que vêm mais duma cabeça de espectador cheia de filmes do que projecções do próprio filme. Rivette evoca, mais do que cita, e evoca, sobretudo, “matrizes”: em entrevista afirmou, por exemplo, “que se não tivesse medo de soar demasiado pretensioso teria intitulado o filme de ‘Lenda de Marie e Julien’, como ‘Lenda de Tristão e Isolda’”. No filme será o universo de Poe a evocação mais explícita, de histórias como a de Ligeia a maldições como a dos Usher, histórias de mulheres e fantasmas, pesadelos e vigílias, cenários de mausoléu. Sobretudo, histórias de amores post-mortem: o primeiro verdadeiro sobressalto do filme é quando nos é apresentado um gato cor de corvo chamado “Nevermore”. Não é bem citação, é sobretudo sinalização, “pista de leitura”, um holofote lançado sobre o romantismo excessivo e tumular, um gatilho para a “mórbida agudeza dos sentidos”: peguem no brilho negro do pelo do gato, parece dizer Rivette, é esta a luz do meu filme.
Todo o “fantástico” de História de Marie e Julien vem daí, desse confronto entre o palpável e o imaginável, maldito ou bendito. Território bem “rivettiano”, o dum “fantástico” gerado por uma imensidão de falsas pistas (algumas são verdadeiras) tendentes a conduzir a imaginação do espectador por caminhos que só ele, espectador, saberá que seguiu e por que os seguiu. Há “intriga” em História de Marie e Julien, e faltava falar da personagem da “Madame X”, mulher detentora de chaves importantes para o desmanchar da intriga. Mas Rivette, sempre “langiano”, adepto de complots, conspirações e sociedades secretas – e de “segredos terríveis” como em Poe – diverte-se a multiplicar ecos da própria intriga, a sugeri-la muito maior e muito mais complexa, a inventar rituais (Béart a recitar uma lengalenga numa língua incompreensível) que, damos por nós a pensar, quase se aproximam da auto-paródia (ou da auto-citação, em todo o caso, e é o ponto onde nos ficam mais dúvidas). Quando, no fundo, a história não é assim tão complicada: é uma história de amor entre Marie e Julien, enquadrada por um segredo de facto “terrível” (mas para o descobrir é preciso ver o filme).
Mas outra conversa é possível. Esta, por exemplo, que se refere (outro aspecto suficientemente notado) à presença do sexo (do sexo explícito, entenda-se) no cinema de Rivette, porventura pela primeira vez – e “assim”, como aqui, de certeza pela primeira vez. O que é importante aí nem é bem o sexo, mas o que ele implica, sobretudo em termos de figuração (e de representação, num sentido mais amplo) de uma intimidade, e em particular de uma intimidade entre os protagonistas masculinos de Rivette e as mulheres. De mulheres está o cinema de Rivette cheio, tantas vezes como protagonistas e em grupo (La Bande des Quatre, Alto, Baixo, Frágil, dois exemplos relativamente recentes); mas são sempre criaturas fugidias, não necessariamente altivas mas sempre esquivas, “resistentes” tanto aos homens-personagem como ao “homem- câmara” – o cinema de Rivette, numa certa perspectiva, é a “reportagem” de um longuíssimo combate pelo acesso a uma intimidade, que passa pelo corpo certamente, mas onde ele é, como o sonho do início de História de Marie e Julien, uma mera “etapa”. Às incertezas desse combate, que faz de um “plateau” ou, no limite, de um plano, um “ring” imaginário, já Rivette dedicou um filme por inteiro, A Bela Impertinente. Reencontra aqui, e não é, não pode ser, um acaso, a sua protagonista desse filme, Emmanuelle Béart – e se há coisa que as cenas de sexo aqui evocam são as sessões de pintura de A Bela Impertinente, as coreografias e as poses, o “aprisionamento” e a “fuga”, a fixação e a mobilidade. Coisas que têm tudo a ver com o pequeno ensaio sobre a carne de que são feitos os fantasmas que História de Marie e Julien acaba por ser.
LMO