BRANCA DE NEVE
de João César Monteiro
Com toda a projecção mediática à volta de “Branca de Neve”, é possível que o espectador, ao entrar para o visionamento do filme, o faça com a sensação de que já “sabe tudo” sobre ele. É um “filme a negro” – esse é o dado que nos têm feito passar como essencial, quando se calhar é legítimo perguntarmo-nos se não se trata afinal de um dado (literalmente) superficial. Porque neste filme, como nos outros com muitas imagens e muitas cores, o que conta é a orgânica; e para nos apercebermos dela, de como se constitui e de como funciona, é evidentemente preciso ver o filme, e constatarmos que, ao contrário do que nos dizem, saber só que é um “filme a negro” é não saber nada, e que “Branca de Neve” é um território polvilhado de surpresas. Aliás, só uma manifesta atracção pelo cheiro a “escândalo” justifica a dita projecção mediática; como lembrava João Mário Grilo nas páginas do PÚBLICO de há uns dias atrás, grande parte da arte do século XX se fez “a partir de gestos da mesma família”, e sem sair do cinema é possível pensar em experiências recentes (o “Blue” de Derek Jarman, por exemplo, que trocava o negro pelo azul) que até já foram exibidas sem qualquer preparação especial por algumas das televisões que agora se interrogam sobre a “legitimidade” de um filme assim.
Voltando à “orgânica” do filme, uma das coisas mais espantosas é o modo como se processa a relação entre o “negro” e a luz. Porque, e será talvez o seu maior “radicalismo”, aqui as coisas funcionam ao contrário – o negro e a escuridão é que são a “natureza” do filme, é que “abraçam” o espectador, e é a luz (planos de céu e de nuvens, mais um plano de ruínas) que se constitui como uma interrupção desse abraço. As “imagens”, aqui, são “flashes” que encandeiam o espectador e que, ironia das ironias, o obrigam a olhar para o lado, tal a violência com que perfuram a ordem perceptiva criada pelo filme. E de resto, esta ideia de um “despertar” associado ao aparecimento das imagens é indissociável do tema da perca (Branca de Neve expulsa do “país dos anões”), absolutamente fulcral no filme e no texto de Walser que lhe serve de estrutura – no fundo, também o espectador está sempre a ser expulso, ou melhor, a ser recordado da sua própria expulsão e da sua própria perca. Até porque “Branca de Neve”, mesmo revista por Walser e por César Monteiro, continua a ser um conto de fadas, a que apenas se acrescentou a consciência magoada da impossibilidade dos contos de fadas. E deste ponto de vista, tudo no filme se parece conjugar enquanto “recriação” de uma espécie de infância dos sentidos – quem diz, perante “Branca de Neve”, que “mais vale ler o livro”, não só se esquece de que este filme, como qualquer outro, é para ser experimentado, como se esquece do tempo em que, em vez de ler o livro, preferia que lhe contassem a história. É para esse tempo que, na sua mais tocante e simples expressão, o filme de César Monteiro nos convoca: está escuro, e alguém nos conta um conto. Já não podemos é adormecer da mesma maneira – e é dessa enorme dor (e só dela?) que “Branca de Neve” nos lembra e nos fala.
LMO