sexta-feira, 22 de agosto de 2008

O SR HULOT CHEGA À CIDADE


O MEU TIO / MON ONCLE
De Jacques Tati

Quatro anos depois da reposição de “Playtime”, eis Jacques Tati de novo nas salas comerciais: “O Meu Tio”, de 1958. Como noutras ocasiões é imprescindível louvar a reposição, tanto mais que, apesar de alguns sinais positivos nos últimos anos, em Portugal ainda não se recuperou um ritmo regular para as reposições de títulos antigos – e isto anda tão fraquinho que bem podia haver uma por semana.
“O Meu Tio”, sem chegar ao extremo de “Playtime” (que, recorde-se, constituiu um tal flop que Tati passou o resto da vida a pagar dívidas), também se trata de um filme muito mais apreciado a posteriori do que pelos seus contemporâneos. Menos porque os seus contemporâneos fossem cegos ou idiotas do que pelo dimensão “em construção” da obra do cineasta francês, sobretudo até “Playtime”. De “Há Festa na Aldeia”, ainda nos anos 40, a “Playtime”, em 1967, há uma progressão lógica, constante (e ao mesmo tempo surpreendente), que só fica perfeitamente iluminada quando se chega ao fim do ciclo. O futuro aclara o passado, como é costume no cinema, e “Playtime” é o “farol” cuja luz atribui à obra de Tati, aos filmes anteriores como aos (poucos) filmes posteriores, o seu derradeiro e mais unificador sentido.

O que é particularmente verdade no caso de “O Meu Tio”, sobretudo por nele se começarem a vislumbrar os primeiros sinais do que Tati tentaria em “Playtime”. Há alguma tendência, por isso, para considerar “O Meu Tio” como uma espécie de “filme-etapa”, um borrão, um balão de ensaio, onde se deve valorizar acima de tudo o que já aponta para o filme de 1967. Que “O Meu Tio” é um “filme-etapa”, certamente, mas no sentido em que são todos os filmes de Tati vistos no contexto da totalidade da obra. E, dada a posição “axial” que ocupa nesse contexto, “O Meu Tio” até é um filme onde o passado, a obra precedente, conta tanto como o futuro e a obra posterior.
É o filme da entrada na cidade, para o pôr assim simplesmente. “Há Festa na Aldeia” e “As Férias do Senhor Hulot” eram filmes de campo, e se a cidade já aparecia no segundo através dos veraneantes citadinos ainda se relevava apenas pela sua matéria humana e social, como conjunto de hábitos, tiques e idiossincrasias das classes médias urbanas. “O Meu Tio” introduz a cidade como cenário, não na forma “total” a que Tati chegaria em “Playtime” mas, um passo de cada vez, através do reduto doméstico – a casa da família Arpel, cujos mobiliário e “gadgets” correspondem a uma primeira instância da impressão de uma ordem (que se pretende) “mecânica”, e que Tati associa ao espaço urbano. Sublinhando o movimento que é o efectuado pelo próprio Tati do campo para a cidade, a família Arpel podia ser uma das famílias de “As Férias do Sr Hulot” uma vez regressada a casa, e há neles, nos Arpel, uma “plenitude” de personagens que se tornará impossível no universo pulverizado e desconjuntado de “Playtime”.
Esse movimento campo/cidade é marcado ainda de outra maneira. Há duas cidades em “O Meu Tio”, a antiga (de onde emerge Hulot), rústica, “popular”, e a moderna (onde vivem os Arpel), sofisticada, “elitista”. A primeira é uma espécie de “persistência” do campo e da ruralidade, uma aldeia em ponto grande, a segunda um espaço de onde qualquer memória desse (ou doutro) tipo foi apagada, visto que só existe o “contemporâneo” e o “moderno”. E este, de certa maneira, é o confronto essencial de “O Meu Tio”, e um dos seus principais conflitos “poéticos” (o outro, obviamente, é de carácter antropológico mais puro e mais abstracto: os humanos em ambiente mecanizado, surpreendidos pela teimosa persistência da sua humanidade). Embora as duas cidades possam ser unidas por um movimento de câmara, não há verdadeira comunicação nem circulação, são sempre dois mundos distintos, estanques, um mundo em vias de ser apagado pelo outro. Os únicos que circulam e passam à vontade de um mundo para o outro são Hulot, agente do caos, e um grupo de miudos e de cães que periodicamente mobilizam a câmara de Tati ou lhes cruzam os enquadramentos. Hulot, as crianças e os animais: em “O Meu Tio” equiparam-se, são uma espécie de memória, uma lembrança de uma liberdade e de uma vida “antigas”. Que aqui ainda têm um “décor” (espécie de evocação neo-realista, nalguns planos singularmente desolada) mas cujos equivalentes em “Playtime” (as floristas, os pedreiros) já não terão, remetidos para cantos e esquinas da grande paisagem urbana.

Entre a nostalgia e uma aceitação mais ou menos melancólica do “presente” nasce o magistral burlesco de “O Meu Tio”. A desarrumação da ordem, a orquestração da desordem. Do “gag” minimalista ao maximalista, “O Meu Tio” contém alguns dos mais clássicos momentos do humor “tatiano”. É começar a contá-los. Não há nada de remotamente parecido com isto em lado nenhum, o burlesco (e toda a comédia, se calhar) é uma tradição morta.

LMO