terça-feira, 15 de julho de 2008

Zombies castigadores



TERRA DOS MORTOS /LAND OF THE DEAD
De George Romero

Vivemos todos no mesmo mundo, é um facto; e a maior parte dos realizadores cujos filmes estreiam em Portugal até vivem no mesmo país (os EUA, informação desnecessária). Portanto não espanta (ou espanta que espante) que em determinados períodos se vão descobrindo recorrentemente os mesmos temas, as mesmas preocupações, os mesmos motivos, nos filmes mais díspares e nos realizadores de universos habitualmente mais desencontrados. Abreviando e dizendo de outra maneira mais rápida e sucinta: quatro anos depois, o 11 de Setembro (e o mundo que se lhe seguiu, ou que ele gerou) vai sendo absorvido, “plasmado”, pelo cinema americano, e directamente integrado no tecido narrativo (ou meramente “alusivo”) de inúmeros filmes. É do que o mundo continua a falar, é naturalmente aquilo de que o cinema fala (em particular o americano, historicamente um dos menos “distraidos”, mesmo se os seus espectadores continuam a vê-lo sobretudo para se “distrairem”).

Vem isto a propósito de “Terra dos Mortos”, o filme que assinala o regresso de George Romero, o homem que dedicou uma vida e obra aos “zombies”, e praticamente os inventou na sua encarnação “moderna” (no célebre “A Noite dos Mortos Vivos”, de 1968, matriz para todo o filme com mortos-vivos, pelo menos até à variação delicodoce de “O Sexto Sentido”). Os “zombies” de Romero nunca foram inócuos, não haveriam de ser estes a sê-lo: “Terra dos Mortos” (título devastador) traz carradas de “comentário” ao mundo contemporâneo, projecta-o num caos pré-apocalíptico, esgueira-se por entre um “labirinto moral” nada binário (são pelo menos quatro as “categorias” das personagens, não há apenas “bons” e “maus”), e no fim, se não celebra “o fim do mundo tal qual o conhecemos”, tem pelo menos uma relação pacificada com ele (o fim do mundo) – belíssimo último plano, onde o fogo de artifício no céu nocturno acompanha as colunas de “zombies” errantes. E pelo meio alude, farta-se de aludir, alude à brava: desde um atentado a umas conspícuas “torres” à sugestão das cidades de um futuro próximo serem como “condomínios privados”, passando pela menção, tintim por tintim, de uma das frases-chave da “novilíngua” pós-2001: “não negociamos com terroristas” (a frase, honni soit qui mal y pense, é dita pelo vilão-mor do filme, encarnado por Dennis Hopper, que acrescenta: “temos outros meios”). É precisamente esse “condomínio privado”, um dos últimos à face da Terra, que se encontra ameaçado pelas hordas de “zombies” em que se transformou a maior parte da população do planeta – cabe um grupo de “operacionais” lidar com a situação, mas pelo meio há renegados oportunistas e interesses obscuros em jogo, que baralham consideravelmente os dados do problema.


Tudo isto num registo que tresanda a série B por todos os poros, seco e estilizado, quase completamente nocturno, personagens definidas apenas por uns quantos traços, nenhum rodriguinho, nada de informação inútil. Entra-se de “chapa” no filme, que parece que começa a meio de uma sequência – e essa é uma boa medida da “condensação” operada por Romero (que monta, ou faz alguém montar por ele, extraordinariamente bem). E num universo que tem algo a ver com o de John Carpenter, é impressão que se acentua com o desenrolar do filme (e “Terra dos Mortos” seria um bom parceiro para filmes como “Fuga de Los Angeles” ou “Os Fantasmas de Marte”). Romero não é um esteta tão acabado como Carpenter, não tem tanto sentido de humor como ele, nem presta tanta atenção à “iconografia” (ou “clastia”); mas partilha com Carpenter a preocupação de conciliar um individualismo acirrado e um elementar “sentido de decência”, partilha a desconfiança “institucional”, e sobretudo partilha uma espécie de puritanismo “castigador” (como é de todo o bom puritano), que acha que perante a corrupção mais vale arrasar e dar de novo – que é como quem diz que, tirando isto ou pondo aquilo, o mundo tem mais ou menos aquilo que merece. Entre o clarão do fogo de artifício final de “Terra dos Mortos” e o clarão do isqueiro de Snake Plissken no final de “Fuga de Los Angeles” não vai assim uma distância tão grande (e a velocidade da luz, aliás, é o que sabemos).


LMO
Adenda: Snake Plissken é um homem demasiado arcaico para usar isqueiros. Portanto, onde se lê "isqueiro" leia-se "fósforo". Gaffe corrigida não sei quantos anos depois.