O filme mais discutido e “interpretado” de sempre continuará a ser, por muitos e
longos anos, o 2001 de Kubrick. Mas, embora de modo mais discreto (é
também um filme muito menos conhecido), The Servant não ficaria muito
atrás do filme do monólito numa hipotética lista dos filmes mais “interpretados”
e “re-interpretados” da história do cinema. Ainda hoje, as explicações sobre o
que de facto ocorre em The Servant e sobre o que é que o filme realmente
diz ou quer dizer são variadíssimas. E o passar do tempo, se naturalmente vai
privilegiando umas teorias em desfavor de outras, também vai gerando novas
explicações. Mormente no que toca à presença de Harold Pinter na autoria do
argumento (mesmo que este seja baseado num romance dum sobrinho de Somerset
Maugham). Em 1963 o recentemente “nobelizado” dramaturgo era ainda um “jovem
autor”, e o seu nome facilmente se “apagava” perante o de Joseph Losey,
realizador consagrado no cinema americano e que para mais gozava ainda da aura
de “exilado”, depois da perseguições e da “lista negra” do senador McCarthy.
Mas, quarenta anos depois, há quem pergunte (e responda), com toda a
pertinência, se a “chave” para um entendimento de The Servant não estará
mais em Pinter do que em Losey, defendendo que as principais linhas de força do
filme reflectem mais o universo temático “pinteriano” do que outra coisa
qualquer (a questão do poder e das relações de poder aplicadas a um nível humano
muito básico e despojado: apenas o confronto entre dois indivíduos e a
aniquilação de um pelo outro). O que faz, inegavelmente, pelo menos algum
sentido.
Mas The Servant, aclamadíssimo na altura em que estreou, duma
maneira que hoje provavelmente já poucos seriam capazes de aclamar (é um filme
um pouco envelhecido, e aquilo que na mise en scène de Losey passou à época por
uma “austeridade gelada” parece hoje o resultado de uma afectação estilística um
tanto maneirista), foi normalmente enquadrado numa grelha temática bastante mais
“sociológica” do que “autorística”.
A história prestava-se a isso. Basicamente,
a narrativa de The Servant não é mais do que a história de um jovem
aristocrata (James Fox) que contrata um criado ou um valete ou um mordomo (a
expressão inglesa “servant” ou “manservant” designa uma função muito específica
e muito tradicionalmente britânica que talvez não tenha tradução portuguesa tão
precisa), que por sua vez, sem fazer nada de especial, conduzirá o jovem
a um estado de absoluta submissão. Fox acaba o filme como uma marioneta, sem
vontade própria e incapaz de qualquer movimento que não seja induzido ou apoiado
pela personagem de Dirk Bogarde (absolutamente excepcional nos seus modos suaves
e ambíguos, na psicologia indefinível, e na sombra sinistra que é capaz de
investir na personagem com um simples e angelical sorriso). A leitura mais comum
de The Servant teve sempre a ver com a “luta de classes”, que o filme
reduziria simultaneamente directa e alegórica, palpável e abstracta. Outras
houve – como a que metia a homossexualidade ao barulho, porventura apoiando-se
na extrema ambiguidade de Bogarde (homem de vários papéis sexualmente ambíguos
quando não explicitamente homossexuais, para além de ser ele próprio um
homossexual que nunca publicamente o assumiu). A “luta de classes”, na
configuração muito específica suscitada pela organização classista da sociedade
britânica, é provavelmente o tema mais velho do cinema inglês (e da literatura
inglesa), e ainda hoje não passou de moda. Em 1963, com o cinema inglês tomado
de assalto pela geração do “free cinema” e pela sua observação crua da realidade
social e da vida das “lower classes”, The Servant ajustava-se que nem uma
luva ao espírito do tempo: uma espécie de fábula, venenosa quanto baste, sobre a
decadência da aristocracia e a degenerescência das chamadas “upper classes”. Com
mais ou menos metáforas, é evidente que esta dimensão estava presente no filme e
não se diluiu com o tempo.
O que ele tem de melhor, no entanto, é o ambiente de
opressão psicológica. Essencialmente “pinteriano” ou não,
The Servant pode ser visto como um conto terrificante sobre a apropriação
e o esvaziamento de uma personalidade. Nesse aspecto é quase um filme de terror
que deixasse o terror sempre em surdina. Os ambientes estilizados, a fotografia
gelada e contrastada (notável trabalho de Douglas Slocombe), a espécie de
deliberada recusa da “humanidade” das personagens, mantidas sempre em silhueta.
Tudo isso nos aproxima de um “ensaio sobre o vampirismo”, crudelíssimo, mordaz e
terrivelmente irónico.
LMO