Texto escrito para a revista polaca Kino, publicado no número de Junho de 2025:
Há muitas histórias contadas no cinema português dos anos 80. A história de um país saído de uma ditadura de 48 anos, terminada a meio da década anterior, e de um período revolucionário e pós-revolucionário marcado por grande instabilidade política. A histórias das esperanças que a geração que tinha 20, 30, 40 anos no 25 de Abril depositou na revolução, esperanças que eram tão grandes que a realidade nunca poderia estar à altura delas. A história dos mais novos, dos que cresceram na ditadura, eram adolescentes em 1974, e foram a primeira geração a fazer-se adulta na liberdade inaugurada pelo 25 de Abril, e traziam ainda como fantasmas os medos com que cresceram, o medo da PIDE, o medo de irem para a guerra colonial. A história de um país culturalmente abafado durante demasiado tempo, infrastruturalmente atrasado e mal apetrechado em quase todos os domínios da vida pública, a fazer a marcha para uma modernidade plena de armadilhas e equívocos, a pôr-se a par com a Europa, para cuja União, quando ainda se chama Comunidade Económica Europa, a CEE referida numa canção dos GNR de 1980 (“Portugal na CEE”), que conservou muito bem o “zeigeist”, e a troça do “zeitgeist”, daquela época, e ficou como uma medida da grande aspiração de Portugal à entrada da década: depois de quase cinquenta anos de isolamento “orgulhosamente só”, Portugal estava à beira de se tornar um país “da Europa”.
A explosão do “rock português”, nessa dobra dos anos 70 para os anos 80, foi um fenómeno sociologicamente extraordinário, porventura a maior manifestação de uma pequena revolução cultural, de uma revolução de mentalidades. A profusão de bandas, que pareciam brotar como cogumelos, algumas apenas simpáticas fraudes que rapidamente se extinguiam, outras possuidoras de um talento, ou mesmo de um génio, duradouro, significava qualquer coisa: ganhava voz uma geração que já não era, definitivamente, como os seus pais, e que tinha pressa de agarrar aquilo que tinha sido vedado aos seus pais, pela censura e pelo bafio cultural do Estado Novo – a criatividade da moderna música “jovem”, a rebeldia de um estilo de vida finalmente desligado do formalismo paroquial cultivado no salazarismo. O cosmopolitismo, também: o desejo de fazer Portugal estar a par de Londres ou de Nova Iorque, cidades que pareceram longínquas durante demasiado tempo. Um dos mais geniais artistas surgidos durante esse período, António Variações, definia a sua música como estando “entre Braga e Nova Iorque”. É uma boa definição da música dele, mas também é uma boa definição do ar que se respirava ou se queria respirar, e uma proposição com consequências que extravasam o estrito domínio musical: também no cinema podemos encontrar reflexos deste desejo, ou desta condição.
Um olhar, cheio de ambiguidade, sobre uma vida marginal, sob inspiração do “rock” ou do “punk” mas também conservando o feitiço mítico dos grandes filmes americanos (como os de Nicholas Ray) sobre a rebeldia juvenil, aparece cedo no cinema português da década – está, por exemplo, no “Dina e Django” de Solveig Nordlund. Não é festivo, mas os filmes de Nicholas Ray também não eram festivos mesmo se podiam ser exuberantes. Ray foi, de resto, uma das maiores influências dos jovens cineastas portugueses que se lançaram nessa década, especialmente das primeiras gerações formadas na recentemente criada escola de cinema estatal – onde tiveram como mestres essenciais os cineastas vindos do “cinema novo” dos anos 1960, assim contribuindo para alimentar um laço, mais ou menos visível caso a caso mas nunca realmente extinto, entre a geração de 80 e a geração de 60, a geração dos “Verdes Anos” ou do “Belarmino”, a primeira a filmar a estufa portuguesa exactamente pelo que era, uma estufa, a primeira que, conhecedora de uma modernidade cinematográfica que quase só podia ver em viagens ao estrangeiro, tinha a cabeça não rigorosamente “entre Braga e Nova Iorque” mas entre Portugal e os principais centros culturais do mundo da altura.
Os mais velhos, é preciso dizer, não estavam parados nos anos 80. O cinema português dos anos 80 também é deles. Manoel de Oliveira, sobretudo: depois do “renascimento” nos anos 70, ao cabo de décadas de trabalho feito em intermitência e irregularidade, o septuagenário Oliveira (tornou-se octogenário em 1988) encontrou nestes anos uma espécie de segunda juventude e um ritmo de trabalho voraz, como se todas as ideias e projectos que passara tanto tempo a abafar atrás do dique do Estado Novo fluíssem agora em cascata. É a década da consagração definitiva de Oliveira, mas também é a década em que ele assina vários dos momentos mais marcantes, e mais radicais, da sua filmografia. “Francisca”, em 1981, que inaugura a relação com a obra da escritora Agustina Bessa-Luís, e foi um inesperado sucesso de público; os filmes “franceses”, “Mon Cas” e “Le Soulier de Satin” (este, um colosso de sete horas de duração, a partir de uma peça de Claudel), objectos de interrogação do teatro e do texto literário, e das ligações entre a modernidade e o classicismo (olhares “modernos” sobre o classicismo, olhares “clássicos” sobre a modernidade?); “Os Canibais”, um filme-ópera, integralmente cantado; “Non ou a Vã Glória de Mandar, no final da década, uma revisão da História de Portugal à luz das derrotas e catástrofes militares do país, como um negativo dos “Lusíadas”. Em “Non” havia um – aliás, celebradíssimo – longo “travelling” sobre uma imponente árvore, e a imagem dessa árvore pode servir de metáfora para o lugar de Manoel de Oliveira no cinema português: a raiz, o tronco e a copa de onde nasciam todas as ramificações, ou que as tornavam possíveis. Desde logo, pelo exemplo de obstinação, pela ousadia de filmar contra as modas artísticas, intelectuais ou mesmo políticas, pela perseguição de desígnios próprios que não fazem nenhuma cedência a códigos e expectativas (muito menos, evidentemente, a códigos e expectativas comerciais).
A obstinação de Oliveira justifica, protege, a obstinação de outros – dos cineastas que vieram do “Cinema Novo” e dos que vieram logo a seguir ele. Os mais próximos em termos de sensibilidade, seriam provavelmente gente como Paulo Rocha (que estreia em 1982 o seu filme mais aproximável de Oliveira, “A Ilha dos Amores”) ou o casal António Reis/Margarida Cordeiro (que estreiam “Ana” em 1985 e “Rosa de Areia” em 1989, o seus derradeiros filmes); mas não se pode esquecer Alberto Seixas Santos (o seu ensaio definitivo sobre “os militares e a revolução” em “Gestos & Fragmentos”, não se pode esquecer Fernando Lopes e a sua atracção por um cinema que retomasse as formas populares (“A Crónica dos Bons Malandros”), não se pode esquecer o que alguém como António-Pedro Vasconcelos ainda devia e reconhecia à obstinação de Oliveira (“O Lugar do Morto”, outra tentativa de cinema popular, muito na linha de Truffaut, por exemplo, foi porventura o mais marcante sucesso comercial português dos anos 1980) mesmo que depois – e só depois - tenha entrado em ruptura completa; não se pode esquecer, bem entendido, o mais original fenómeno dessa geração, João César Monteiro, que termina a década de 1980 trazendo de Veneza um Leão por “Recordações da Casa Amarela”. Se todos estes cineastas, no fundo, nunca deixaram de interrogar este país, nem o que significava “ser português” em cada contexto histórico preciso, talvez nenhum o tenha feito de maneira mais poeticamente desesperada, ou mais escatológica, do que Monteiro.
A geração de 80 do cinema português nasce destes, e com estes, exemplos, com os quais nunca deixou de dialogar (não se pode pensar a estreia de Pedro Costa, “O Sangue”, sem pensar também em tudo aquilo que nesse filme, de modo mais ou menos secreto, comunica com o cinema de Paulo Rocha, por exemplo). Apesar das liberdades, apesar do arejamento cultural, apesar das condições de vida que a pouco se aproximavam das de um país moderno, o que marca o cinema português da geração de 80 é a sensação de que essa estufa, no essencial, pouco mudara. É um cinema essencialmente nocturno, é um cinema de órfãos, ou um cinema que desconfia dos adultos, das figuras paternas (numa ambiguidade que talvez se explique pelo lastro deixado pelo paternalismo salazarista), um cinema em que os miúdos ziguezagueiam na noite, num movimento ansioso de libertação mas sempre preso por qualquer coisa. Um cinema condenado a um labirinto entre a cidade e o campo, como dois opostos que se atraem e repelem mutuamente, expressão da condição de um país cuja raíz era essencialmente rural mesmo se sentia a atracção pela modernidade representada pelas cidades. Um cinema sem destino, incapaz de resolver este conflito e de encontrar um lugar seguro, confortável, entre aquilo que Portugal tinha sido e aquilo que Portugal se aprestava a ser. Um cinema que tinha os olhos na memória do cinema universal mas que não se podia impedir de estar sempre a tropeçar nas coisas e nas coisinhas deste país, e a ser agarrado pela força da gravidade. Um cinema de “zombies” (como os de Jacques Tourneur, de que Pedro Costa tanto se apropriou), um cinema de “mutantes” como os que (já na década seguinte) Teresa Villaverde filmou: gente que está sempre a tornar-se noutra coisa sem nunca se tornar em coisa nenhuma, gente já não pode ser o que foi mas também não consegue ser o que é agora, eternamente apanhada “entre”. Vultos na noite, entre a agitação e a resignação: o cinema português dos anos 80 é um pouco isto (a sua extraordinária modernidade também é isto), tantos anos depois talvez vejamos nele um retrato fiel do que éramos, e do que se calhar ainda somos, mesmo desejando ardentemente ser outra coisa.
LMO