É difícil, para não dizer que é impossível, tentar abranger em poucas palavras e em pouco tempo toda a vastidão de um volume como este, já para não falar de uma colecção de volumes como esta. Ao contrário do que por vezes que se diz ou insinua, o João Bénard da Costa não é sempre igual. É sempre o mesmo, sempre a mesma pessoa, tanto quando se pode dizer de alguém que “é sempre a mesma pessoa”, mas nunca é igual e não há dois textos iguais. Diferentes filmes põem diferentes problemas, que implicam respostas diferentes e, sobretudo, caminhos diferentes para chegar a elas. Os textos do JBC sobre o Hitchcock, por exemplo, são diferentes dos textos do JBC sobre o Ford, por exemplo – problemas diferentes, respostas diferentes, caminhos diferentes. Estes textos são para ser lidos um a um, nenhuma consideração genérica se pode substituir a eles, muito menos eliminar qualquer um deles. Todos tocam qualquer coisa de único e essencial
Mesmo naqueles
filmes e cineastas que o JBC não amava, pelo menos da mesma maneira com que
amava outros, e que nalguns casos até detestava. Quando falamos dos textos do
JBC temos o hábito, que de resto vem por muito boas razões, de nos
concentrarmos nos amores dele, e nos textos em que ele mais exuberantemente,
mas sempre lucidamente, exprimiu esse amor. Mas o desamor também é importante
em alguém que escreve sobre cinema, porque nenhum crítico de cinema (e se esta
é uma expressão que se parece adequar pouco a uma figura com a dimensão do JBC,
há nobreza suficiente na função de crítico de cinema para que lhe chamemos
isso, dizer que ele foi um enorme critico de cinema, sem que isso o apequene e,
antes pelo contrário, seja mais um dos elementos da sua grandeza) se define e
decide apenas por aquilo de que gosta, porque tão importante como isso é aquilo
de que não gosta, ou de que gosta pouco. Até é uma pena, pensei várias vezes,
que o JBC não escreva mais sobre o que não aprecia, embora perceba perfeitamente
que não o quisesse fazer. Ora justamente um dos aspectos únicos de um volume e
de uma colecção como estes é trazer-nos o contacto com o JBC não apenas como
sujeito-amante mas também como sujeito-detestante. E ao lado de todos aqueles
que o JBC mais amou e ocupam a maior extensão do volume – Schroeter, Sirk,
Sjöström, Sokurov, Sternberg, Stiller, Syberberg, Tourneur, Truffaut, Ulmer,
King Vidor, Visconti, Walsh, Welles, Whale, Billy Wilder – figuram muitos nomes
por quem não tinha nenhuma devoção especial, os Joseph Sargents, os
Schlondorffs, os Wim Wenders, os Zeffirellis, ou mesmo alguns esteios da
Hollywood clássica como George Stevens, o outro Vidor, Charles, Sam Wood ou
William Wyler.
Estes textos
são tão importantes como os outros, dão também a ver, ou a ler, como JBC também
é irredutível ao espectáculo da adjectivação, essa adjectivação que se tornou
parte da sua lenda – o “pasmoso”, o “inadjectivável”, que é o adjectivo que
esgota todos os outros adjectivos. No absoluto domínio do seu estilo de
escrita, JBC era, claro, um mestre da adjectivação, e ninguém no seu perfeito
juízo é capaz de usar adjectivos como esse, pela sensação de estar a usurpar
propriedade privada. Mas era muito mais do que isso, e de algo muito mais
importante do que isso, era um escritor do substantivo, do substancial, e da
substantivação. E se calhar, é nesses textos onde a adjectivação não cabe da
mesma maneira que essa substantivação se torna mais evidente.
Desde que o José
Manuel Costa me propôs apresentar esta sessão que tenho andado a pensar “e
agora, como é que te safas desta?”. E um dia destes em que estava a pensar em
como é que me havia de safar desta tropecei, casualmente, numa frase de outro
grande escritor de cinema, Louis Skorecki, que aliás já esteve aqui nesta sala.
Cito em tradução do francês: “Às vezes escrever sobre cinema é mais importante
do que o próprio cinema. Às vezes um texto pode santificar um filme, e fazê-lo
existir no mundo”. O seguimento do texto do Skorecki reporta-se uma ideia (que
não faz sentido explorar aqui) sobre o Shining do Kubrick e um texto de
Jean-Pierre Oudart (diz o Skorecki que sem o texto do Oudart o Shining
seria só um pré-Scary Movie). Mas acho que, como me aconteceu, todos
nesta sala imediatamente intuem em que é que estas palavras e esta ideias –
“santificar um filme”, “fazê-lo existir no mundo” – se aplicam como a luva ao
JBC e aos seus textos. E nem me refiro àqueles tempos em que os filmes eram de
muito mais difícil acesso do que agora são (ninguém tinha DVDs nem blu-rays em
casa, nem havia a internet como grande videoteca cibernética aonde a qualquer
momento se pode ir buscar qualquer filme que se deseje ver), e em que havia tantos
filmes que nunca tínhamos visto mas que já existiam no nosso mundo porque
tínhamos lido o que o JBC tinha escrito sobre eles (e quando finalmente os
víamos, as imagens do filme e as palavras do JBC sobrepunham-se, aconteceu-me com Portrait of Jennie, um filme que
só vi algo tardiamente e com uma sensação de déjá vu que vinha, percebi depois,
da familiaridade com o texto do JBC). Falo também de todos os filmes que já
vimos, e que vimos até várias vezes, e que existem mesmo assim também através
da forma como neles ecoam as palavras que lemos ou ouvimos ao JBC. “Santificar
um filme” se calhar também é isto: entrar para dentro dele, viver dentro dele
como uma memória, como uma outra memória. Creio que não é preciso dar exemplos
de casos em que isto aconteceu e acontece, todos nos lembramos, no mínimo dos
mínimos, de um caso em que isto aconteceu e continua a acontecer.
E depois,
sejamos francos: o cinema tal como o conhecemos está a acabar. Vai passar a ser
outra coisa, a própria relação com ele vai ser outra coisaa, e até podem ser
coisas interessantíssimas mas não serão a mesma coisa. Ainda há poucos dias,
numa entrevista, o Victor Erice falava disso de uma forma lapidar. É minha
convicção (e também não vale a pena discuti-la aqui) que em uma ou duas
gerações todo este cinema do século XX que foi o fulcro do amor do JBC, e que
foi também o cinema que a uma maioria de nós fez amar o cinema, se tornará
incompreensível. À medida que se quebre o laço com o século XX, o cinema que
guardou a imagem dele, e que se fez da imagem dele, tornar-se-á progressivamente
incompreensível, uma coisa bizantina, até intoleravelmente incompreensível e
bizantina (e já há amplos sinais disso). Um volume como este garante-nos um outra
forma de preservação desta memória, uma forma de, no sentido skoreckiano,
santificar essa memória. E faz-me pensar no JBC como uma personagem de um filme
sobre o qual escreve neste volume, o Fahrenheit 451 do Truffaut. Como os
homens-livro e as mulheres-livro desse filme, o JBC foi um homem-filme. Mas ao
contrário das personagens do Truffaut e do Bradbury, ele não decorou apenas um
filme, decorou milhares. E com estes volumes, continuará a recitá-los.
Se calhar, nesse
filme e nessa folha até há umas breves palavras perfeitas para resumir este
volume e esta colecção. “De onde vem a beleza do fogo, Montag?”: esta pergunta
é, no fundo, a pergunta que inquieta o JBC em cada texto, e para a qual
encontra mil respostas que se calhar são sempre a mesma, uma e só resposta.
E posto isto,
vamos ao Shanghai Express.
LMO
(Texto lido na Cinemateca Portuguesa, na sessão de lançamento do 6º volume da colecção Escritos sobre Cinema de João Bénard da Costa Tomo I).