sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Vultos na Noite – o Cinema Português da década de 1980

 Texto escrito para a revista polaca Kino, publicado no número de Junho de 2025:

Há muitas histórias contadas no cinema português dos anos 80. A história de um país saído de uma ditadura de 48 anos, terminada a meio da década anterior, e de um período revolucionário e pós-revolucionário marcado por grande instabilidade política. A histórias das esperanças que a geração que tinha 20, 30, 40 anos no 25 de Abril depositou na revolução, esperanças que eram tão grandes que a realidade nunca poderia estar à altura delas. A história dos mais novos, dos que cresceram na ditadura, eram adolescentes em 1974, e foram a primeira geração a fazer-se adulta na liberdade inaugurada pelo 25 de Abril, e traziam ainda como fantasmas os medos com que cresceram, o medo da PIDE, o medo de irem para a guerra colonial. A história de um país culturalmente abafado durante demasiado tempo, infrastruturalmente atrasado e mal apetrechado em quase todos os domínios da vida pública, a fazer a marcha para uma modernidade plena de armadilhas e equívocos, a pôr-se a par com a Europa, para cuja União, quando ainda se chama Comunidade Económica Europa, a CEE referida numa canção dos GNR de 1980 (“Portugal na CEE”), que conservou muito bem o “zeigeist”, e a troça do “zeitgeist”, daquela época, e ficou como uma medida da grande aspiração de Portugal à entrada da década: depois de quase cinquenta anos de isolamento “orgulhosamente só”, Portugal estava à beira de se tornar um país “da Europa”.

A explosão do “rock português”, nessa dobra dos anos 70 para os anos 80, foi um fenómeno sociologicamente extraordinário, porventura a maior manifestação de uma pequena revolução cultural, de uma revolução de mentalidades. A profusão de bandas, que pareciam brotar como cogumelos, algumas apenas simpáticas fraudes que rapidamente se extinguiam, outras possuidoras de um talento, ou mesmo de um génio, duradouro, significava qualquer coisa: ganhava voz uma geração que já não era, definitivamente, como os seus pais, e que tinha pressa de agarrar aquilo que tinha sido vedado aos seus pais, pela censura e pelo bafio cultural do Estado Novo – a criatividade da moderna música “jovem”, a rebeldia de um estilo de vida finalmente desligado do formalismo paroquial cultivado no salazarismo. O cosmopolitismo, também: o desejo de fazer Portugal estar a par de Londres ou de Nova Iorque, cidades que pareceram longínquas durante demasiado tempo. Um dos mais geniais artistas surgidos durante esse período, António Variações, definia a sua música como estando “entre Braga e Nova Iorque”. É uma boa definição da música dele, mas também é uma boa definição do ar que se respirava ou se queria respirar, e uma proposição com consequências que extravasam o estrito domínio musical: também no cinema podemos encontrar reflexos deste desejo, ou desta condição.

Um olhar, cheio de ambiguidade, sobre uma vida marginal, sob inspiração do “rock” ou do “punk” mas também conservando o feitiço mítico dos grandes filmes americanos (como os de Nicholas Ray) sobre a rebeldia juvenil, aparece cedo no cinema português da década – está, por exemplo, no “Dina e Django” de Solveig Nordlund. Não é festivo, mas os filmes de Nicholas Ray também não eram festivos mesmo se podiam ser exuberantes. Ray foi, de resto, uma das maiores influências dos jovens cineastas portugueses que se lançaram nessa década, especialmente das primeiras gerações formadas na recentemente criada escola de cinema estatal – onde tiveram como mestres essenciais os cineastas vindos do “cinema novo” dos anos 1960, assim contribuindo para alimentar um laço, mais ou menos visível caso a caso mas nunca realmente extinto, entre a geração de 80 e a geração de 60, a geração dos “Verdes Anos” ou do “Belarmino”, a primeira a filmar a estufa portuguesa exactamente pelo que era, uma estufa, a primeira que, conhecedora de uma modernidade cinematográfica que quase só podia ver em viagens ao estrangeiro, tinha a cabeça não rigorosamente “entre Braga e Nova Iorque” mas entre Portugal e os principais centros culturais do mundo da altura.

Os mais velhos, é preciso dizer, não estavam parados nos anos 80. O cinema português dos anos 80 também é deles. Manoel de Oliveira, sobretudo: depois do “renascimento” nos anos 70, ao cabo de décadas de trabalho feito em intermitência e irregularidade, o septuagenário Oliveira (tornou-se octogenário em 1988) encontrou nestes anos uma espécie de segunda juventude e um ritmo de trabalho voraz, como se todas as ideias e projectos que passara tanto tempo a abafar atrás do dique do Estado Novo fluíssem agora em cascata. É a década da consagração definitiva de Oliveira, mas também é a década em que ele assina vários dos momentos mais marcantes, e mais radicais, da sua filmografia. “Francisca”, em 1981, que inaugura a relação com a obra da escritora Agustina Bessa-Luís, e foi um inesperado sucesso de público; os filmes “franceses”, “Mon Cas” e “Le Soulier de Satin” (este, um colosso de sete horas de duração, a partir de uma peça de Claudel), objectos de interrogação do teatro e do texto literário, e das ligações entre a modernidade e o classicismo (olhares “modernos” sobre o classicismo, olhares “clássicos” sobre a modernidade?); “Os Canibais”, um filme-ópera, integralmente cantado; “Non ou a Vã Glória de Mandar, no final da década, uma revisão da História de Portugal à luz das derrotas e catástrofes militares do país, como um negativo dos “Lusíadas”. Em “Non” havia um – aliás, celebradíssimo – longo “travelling” sobre uma imponente árvore, e a imagem dessa árvore pode servir de metáfora para o lugar de Manoel de Oliveira no cinema português: a raiz, o tronco e a copa de onde nasciam todas as ramificações, ou que as tornavam possíveis. Desde logo, pelo exemplo de obstinação, pela ousadia de filmar contra as modas artísticas, intelectuais ou mesmo políticas, pela perseguição de desígnios próprios que não fazem nenhuma cedência a códigos e expectativas (muito menos, evidentemente, a códigos e expectativas comerciais).

 

A obstinação de Oliveira justifica, protege, a obstinação de outros – dos cineastas que vieram do “Cinema Novo” e dos que vieram logo a seguir ele. Os mais próximos em termos de sensibilidade, seriam provavelmente gente como Paulo Rocha (que estreia em 1982 o seu filme mais aproximável de Oliveira, “A Ilha dos Amores”) ou o casal António Reis/Margarida Cordeiro (que estreiam “Ana” em 1985 e “Rosa de Areia” em 1989, o seus derradeiros filmes); mas não se pode esquecer Alberto Seixas Santos (o seu ensaio definitivo sobre “os militares e a revolução” em “Gestos & Fragmentos”, não se pode esquecer Fernando Lopes e a sua atracção por um cinema que retomasse as formas populares (“A Crónica dos Bons Malandros”), não se pode esquecer o que alguém como António-Pedro Vasconcelos ainda devia e reconhecia à obstinação de Oliveira (“O Lugar do Morto”, outra tentativa de cinema popular, muito na linha de Truffaut, por exemplo, foi porventura o mais marcante sucesso comercial português dos anos 1980) mesmo que depois – e só depois - tenha entrado em ruptura completa; não se pode esquecer, bem entendido, o mais original fenómeno dessa geração, João César Monteiro, que termina a década de 1980 trazendo de Veneza um Leão por “Recordações da Casa Amarela”. Se todos estes cineastas, no fundo, nunca deixaram de interrogar este país, nem o que significava “ser português” em cada contexto histórico preciso, talvez nenhum o tenha feito de maneira mais poeticamente desesperada, ou mais escatológica, do que Monteiro.

A geração de 80 do cinema português nasce destes, e com estes, exemplos, com os quais nunca deixou de dialogar (não se pode pensar a estreia de Pedro Costa, “O Sangue”, sem pensar também em tudo aquilo que nesse filme, de modo mais ou menos secreto, comunica com o cinema de Paulo Rocha, por exemplo). Apesar das liberdades, apesar do arejamento cultural, apesar das condições de vida que a pouco se aproximavam das de um país moderno, o que marca o cinema português da geração de 80 é a sensação de que essa estufa, no essencial, pouco mudara. É um cinema essencialmente nocturno, é um cinema de órfãos, ou um cinema que desconfia dos adultos, das figuras paternas (numa ambiguidade que talvez se explique pelo lastro deixado pelo paternalismo salazarista), um cinema em que os miúdos ziguezagueiam na noite, num movimento ansioso de libertação mas sempre preso por qualquer coisa. Um cinema condenado a um labirinto entre a cidade e o campo, como dois opostos que se atraem e repelem mutuamente, expressão da condição de um país cuja raíz era essencialmente rural mesmo se sentia a atracção pela modernidade representada pelas cidades. Um cinema sem destino, incapaz de resolver este conflito e de encontrar um lugar seguro, confortável, entre aquilo que Portugal tinha sido e aquilo que Portugal se aprestava a ser. Um cinema que tinha os olhos na memória do cinema universal mas que não se podia impedir de estar sempre a tropeçar nas coisas e nas coisinhas deste país, e a ser agarrado pela força da gravidade. Um cinema de “zombies” (como os de Jacques Tourneur, de que Pedro Costa tanto se apropriou), um cinema de “mutantes” como os que (já na década seguinte) Teresa Villaverde filmou: gente que está sempre a tornar-se noutra coisa sem nunca se tornar em coisa nenhuma, gente já não pode ser o que foi mas também não consegue ser o que é agora, eternamente apanhada “entre”. Vultos na noite, entre a agitação e a resignação: o cinema português dos anos 80 é um pouco isto (a sua extraordinária modernidade também é isto), tantos anos depois talvez vejamos nele um retrato fiel do que éramos, e do que se calhar ainda somos, mesmo desejando ardentemente ser outra coisa.

LMO

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Munich 1938 ou la Paix pour Cent Ans, Marcel Ophuls, 1967; Novembertage - Stimmen und Wege ("Dias de Novembro - Vozes e Caminhos"), Marcel Ophuls, 1990

 

Munich 1938 ou la Paix pour Cent Ans é o primeiro dos grandes documentários históricos de Marcel Ophuls, que a seguir (em 1969) realizaria Le Chagrin et la Pitié, porventura o mais célebre dos seus filmes e aquele que firmou definitivamente a importância do filho de Max. Munich, como outros futuros filmes de Ophuls, foi realizado para a televisão, por encomenda do canal francês ORTF e com a participação de uma estação de televisão alemã – razão pela qual se fizeram duas versões diferentes do filme, uma francesa outra alemã, com diferenças que terão ido um pouco para além da questão linguística (em todo o caso a versão que vamos ver, a francesa, é tida como sendo a “autêntica”).

Dividido em duas partes, cada uma intitulada a partir de citações de Winston Churchill (“La Faiblesse des Bons” e “La Malice des Mechants”), Munich é uma análise detalhadíssima do processo que culminou com a assinatura dos acordos de Munique, em Setembro de 1938, o último e desesperado gesto de “appeasement” da gula de Hitler, que na prática sacrificou a Checoslováquia (assim oferecida ao famigerado “lebensraum”) a troco da promessa de uma “paz para cem anos”, como então, nas potências ocidentais (França e Reino Unido), muitos acreditavam.

Em 1967 ainda estavam vivos muitos dos intervenientes directos ou indirectos no processo, e Ophuls foi em busca deles. O leque de deponentes é impressionante, e se se concentra sobretudo em antigos responsáveis políticos ou militares franceses, também faz ouvir ingleses (Anthony Eden, que fora ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido até Fevereiro de 1938), alemães (Paul Schmidt, intérprete de Hitler) e checos (Hubert Masaryk, o único checo presente nas conversações, integrado na delegação britânica). Dos quatro protagonistas do encontro de Munique, no entanto, só Edouard Daladier, então primeiro-ministro de França, estava vivo em 1967. Sem surpresa, é com ele que Ophuls abre o filme, e o seu testemunho – a sua descrição dos factos e as suas impressões sobre os factos, o rosto que se diria ainda possuído por uma esmagadora amargura – é absolutamente crucial na organização de Munich. Os outros três signatários – Hitler, Chamberlain e Mussolini – ficam, naturalmente, remetidos à condição de “protagonistas ausentes”; mas dir-se-ia haver um outro “protagonista ausente”, alguém cuja sombra se faz sentir ao longo de todo o filme, desde os títulos iniciais; justamente Winston Churchill, que ainda não tinha as responsabilidades que viria a ter mas foi, na altura, um dos mais claros e prescientes críticos do acordo de Munique. As suas palavras ecoam em diversos momentos do filme, seja através das suas memórias, lidas em voz alta pelo seu filho Randolph, seja pelo relato de conversas particulares como as descritas pela sua amiga Lady Asquith (“não vendemos só a Checoslováquia, vendemo-nos a nós”).

Se, através dessas alusões, Munich se constitui numa espécie de homenagem à lucidez de Churchill, a atitude de Ophuls não é necessariamente acusatória para com todos os outros que acreditaram, mais ou menos, que o sacrifício da Checoslováquia ia conter Hitler e se justificava por esse bem maior de uma “paz para cem anos”. Como alguém diz no filme, “falar depois das coisas acontecerem é fácil”. Ophuls, falando e fazendo falar trinta anos depois das coisas terem acontecido, sabe-o bem. Mais, muito mais, do que um “indictment”, Munich é um esforço de compreensão dos mecanismos políticos (todas as razões de contexto, quer em França quer no Reino Unido) e individuais (a própria psicologia dos intervenientes, com destaque para Neville Chamberlain, que como refere Lady Asquith acabou por se ver a si próprio como “um Messias” cuja missão era “salvar a alma dos ditadores”) que levaram à assinatura do acordo. Nenhuma confusão de prioridades: como os títulos de ambas as partes afirmam, é muito claro quem são os “bons” e quem são os “maus”. O que importa é perceber por que razão é que os “bons” foram “fracos” demais perante a “malícia” dos “maus”. 

E, enquanto tudo isto se passava, Fred Astaire dançava. Munich também é, obviamente, um requiem pela inocência do tempo em que se sapateava sobre o vulcão.

*** 

“Meu Deus Marcel, a sorte que tiveste por o cineasta

Max Ophuls ter emigrado com a família para Oeste e não para Leste”

(Marcel Ophuls, num suspiro durante o filme)

Para assinalar o primeiro aniversário da queda do Muro de Berlim, a BBC encomendou a Marcel Ophuls um filme sobre o tema, que focasse também a questão da reunificação alemã, lançada pelos acontecimentos de Novembro de 1989 e formalmente concretizada meros onze meses depois, em Outubro de 1990. Novembertage foi esse filme, o penúltimo na obra de Ophuls, que depois dele só realizou Veillées d’Armes, em 1994. Por causa do meio para que foi feito – a televisão – Novembertage teve uma circulação restrita e persistem algumas dúvidas quanto à sua real data de estreia, encontrando-se menções a 1990, 1991 e 1992 conforme as fontes. Mas, em princípio, terá mesmo sido exibido na BBC no final de 1990, pelo que adoptamos essa como a data de Novembertage.

Ophuls chamou ao seu filme uma “comédia musical”. Gesto dessacralizador, com certeza, que implica um distanciamento (por acréscimo, é a própria história recente da Alemanha que é tornada numa “comédia musical”) e onde não é impossível encontrar algum espírito de auto-defesa por parte do próprio Ophuls, porque obviamente a história da Alemanha lhe diz muito e condicionou a sua própria vida (Marcel era um garoto quando o pai Max decidiu levar a família para onde estivesse resguardada dos nazis). Mas também, e na maneira como o filme responde a esse apodo (da Marlene do Blaue Engel de Sternberg à Liza Minelli do Cabaret de Bob Fosse vários são os excertos de filmes e de canções que vêm comentuar, pontuar ou influenciar a narração e a montagem), também um gesto “operativo”: como se só pela “comédia” fosse possível narrar a “débacle” da RDA. Do mal entendido que levou Schabowski, na noite de 9 de Novembro, a precipitar a abertura da fronteira, ao guarda-fronteiriço, de serviço nessa noite, que só soube que devia deixar passar as pessoas porque a mulher lhe telefonou a contar-lhe… É a comédia, ainda, que responde frequentemente aos entrevistados de Ophuls, sobretudo aos que tiveram responsabilidades políticas na manutenção da RDA ou no seu desabamento, como Egon Krenz ou Schabowski, ou ainda, e muito especialmente (porque a sua entrevista tem momentos inacreditáveis, como quando ele se põe a falar da sua “ingenuidade”), Markus Wolf, o “super-espião”, eminência parda da STASI. Da comédia pode-se encarregar Ophuls “in loco” (quando cantarola, quando graceja, quando recorre à provocação dando mostras de um perfeito espírito de “stand-up comedian”), ou pode fazê-lo pela montagem (os excertos de filmes, os papagaios, as gargalhadas). Ninguém pode estar seguro de estar a controlar a sua imagem (ou as suas palavras), porque Ophuls faz questão de a guardar para si, sem qualquer neutralidade. Diz-se que alguns intelectuais da RDA, como Christa Wolf, se recusaram a prestar depoimentos para o filme justamente com medo disto. Caso particularmente revelador da severidade com que Ophuls usa o seu dispositivo para confrontar os entrevistados com as palavras e com a História é o momento da conversa com a filha de Brecht, Barbara. Amena cavaqueira, recordações do tempo de crianças (as famílias Brecht e Ophuls conviveram bastante durante exílio americano) mas depois, quando Barbara nega a proximidade do Berliner Ensemble, e a sua própria proximidade pessoal, face ao regime, Ophuls corta para uma declaração de Heiner Muller (que diz que Barbara está a faltar à verdade) e a seguir para imagens de arquivo que mostram Erich Honecker e Barbara Brecht lado a lado durante um espectáculo, na primeira fila da plateia.

Noutros momentos, Ophuls concede. Como quando na conversa com o maestro Kurt Masur este lhe diz que, como Ophuls “não estava lá” não tem o “direito” de fazer certas perguntas. E Ophuls responde: “talvez não tivesse o direito de fazer a pergunta mas obtive uma muito boa resposta”. E é também pelo discurso directo que Ophuls revela, com toda a franqueza, o que sente perante a perspectiva da reunificação alemã. Confrontado com as hesitações e os receios de Barbel Bohley (que sintetizam, por sua vez, as hesitações e receios de outros intervenientes), o cineasta comenta que “não os compreende”, porque a libertação do regime totalitário é uma coisa tão “maravilhosa” que abafa tudo o resto. Mas por aí se toca numa questão que corre todo o filme, a do desmantelamento da RDA como consequência obrigatória da queda do Muro. No Ocidente, o “fim da RDA” e a “queda do Muro” tornaram-se sinónimos; Novembertage ouve os argumentos dos que, lutando pela queda do Muro, acreditavam ainda assim na possibilidade da manutenção da RDA (e que, um pouco como Gorbatchov na URSS, cedo perderam o controlo sobre a “criatura” a que deram vida). Nem que fosse como desconcertantemente responde Heiner Muller: “A democracia aborrece-me, vivi no nazismo e no comunismo, só me sei entender com as ditaduras”.

Inesgotável nas suas implicações e nas gavetas que vasculha (para Ophuls o “político” está em todo o lado, e não será por acaso que logo ao princípio associa a libertação política do povo da RDA à sua libertação sexual), descrente no comunismo mas sem nenhuma fé excessiva no capitalismo (“money, money, money”, diz a canção, e o filme acaba sob o signo do dinheiro), Novembertage, pelo que documenta e pelo que produz sobre essa documentação, é uma peça fundamental de história contemporânea narrada e investigada através do cinema.

LMO

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Z, Costa-Gavras, 1969


Eis um dos mais célebres filmes políticos feitos na Europa durante essas tão politizadas épocas que foram os anos 1960 e 1970, e o filme que definitivamente lançou Costa-Gavras para uma carreira onde abundaram os filmes políticos. Filmes políticos “de esquerda”, evidentemente e quase nem seria preciso dizê-lo, e rodados nos mais diversos sítios, do Chile em Missing (com Jack Lemmon, em 1982) àquelas profundezas americanas onde abundam os racistas e os supremacistas brancos num filme como Betrayed (com Debra Winger, em 1988). Este espírito “vai a todas” valeu a Costa-Gavras uma reputação na primeira linha dos cineastas “de causas”, embora o seu “esquerdismo” político tenha, por norma, pouca correspondência com o relativo conformismo das suas opções de mise en scène – é uma obra geralmente académica, onde a variação se costuma registar apenas no nível de solidez e sobriedade desse academismo. Convém notar, a este propósito, que Z muito naturalmente não foi estreado em Portugal antes do 25 de Abril de 1974, demasiado evidentes que eram (apesar de todos os “disfarces” do filme) as suas alusões a um regime totalitário de direita – foi apenas exibido em sessões especiais nos meses finais de 74, a tempo de ainda assim levar um título português, Z - A Orgia do Poder, completamente desajustado (damos um doce a quem encontrar aqui qualquer coisa semelhante a uma “orgia do poder”) mas talvez apelativo para um público a quem demasiadas coisas tinham sido proibidas durante demasiado tempo.

Costa-Gavras não era um desconhecido e já tinha alcançado um razoável sucesso com um filme de 1965, Compartiment Tueurs, baseado num romance policial de Sébastien Japrisot. Quando descobriu o romance do grego Vassilis Vasilikos, a ideia de o passar a filme foi imediata. O romance tocava fundo a alguém como ele, exilado político em França desde os anos 50, desde que as opções políticas do seu pai o tornaram “persona non grata” na sua Grécia natal. O romance de Vasilikos relatava o assassinato, com a conivência e o encobrimento das autoridades militares, de um deputado da oposição grega em 1963, acontecimento que podia ser facilmente apresentado como um preâmbulo para a chamada Ditadura dos Coronéis instaurada em 1967. Era portanto o veículo perfeito para denunciar a situação política grega mas, por todas as razões, não podia ser rodado na Grécia. Costa-Gavras tentou os americanos, mas a United Artists, inicialmente receptiva, abandonou a ideia, bem consciente da delicadeza política do tema. Por intermédio de Jacques Perrin, então a iniciar-se como produtor (foi o seu primeiro filme nessa função, conciliando ainda uma participação como actor), conseguiu o apoio dos argelinos (foi como representante da Argélia que o filme ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1970), o que explica as localidades argelinas e o carácter relativamente não-identificado das nacionalidades e facções em questão (é fácil confundir a história, de facto e tal como o filme a conta, com um hipotético episódio sucedido durante a presença francesa na Argélia). Para o argumento Costa-Gavras rodeou-se de exilados: Jorge Semprun, refugiado do franquismo, e, não-creditado, Ben Barzman, que abandonara os Estados Unidos depois de ter ido parar à lista negra do Senador McCarthy. Contou, ainda, com impressionante leque de actores e actrizes, alguns deles manifestamente subaproveitados (como o veterano Jean Dasté, embora o seu papel corresponda mais ao perfil duma “participação especial”, ou sobretudo a fabulosa Clotilde Joano, aqui numa personagem plana e tratada com descoroçoante indiferença). 

Sobre-aproveitadas são, isso sim, algumas personagens e algumas situações narrativas – o sentimentalismo da relação entre Montand e Irene Papas, dado primeiro pelos flash-backs e “visões” dele, e depois do atentado pelas cenas em que Papas se limita a exibir uma pose sofredora antes de desaparecer do filme, emperra o essencial, que até é algo de bastante pragmático. Quando, depois da morte da personagem de Montand, o “protagonista” passa a ser o juiz Trintignant (personagem também com um duplo na realidade, Christos Sartzetakis, que viria a ser Presidente da República grega), o filme encontra finalmente o seu foco, na história clássica do homem justo que, por mais implicado que esteja no regime, é capaz de ver e distinguir o que está certo e o que está errado (Trintignant, brilhante como sempre, encarna na perfeição este processo de “conversão”, com apoteose na cena em que ele próprio, que passara o filme a corrigir os seus interlocutores instando-os a dizerem “incidente” em vez de “assassínio”, utiliza por sua vez essa palavra – “assassínio”). Maniqueista, Z é certamente, e o filme não se concluirá sem uma série de planos, não isentos de ironia, em que ao espectador é dado o prazer de ver castigados os figurões por trás do complot. Antes disso, e se em termos puramente “cinemáticos” (De Palma chamaria um figo a este aspecto) Costa-Gavras não tira especial partido da “decomposição”, a posteriori e em vários pontos de vista, do acontecimento central (a agressão a Montand), é capaz de uma muito razoável tensão na descrição do ambiente dessa noite, bem suportado em personagens como a dupla Yago/Vago, que parecem nomes de personagens de cartoons, e a que Renato Salvatori e Marcel Bozzuffi conferem uma aura suficientemente perturbadora para configurarem uma expressão de um mal mesquinho e cruel. Um pouco envelhecido, um pouco caótico na sua dispersão, Z conserva ainda assim os elementos necessários para que um visionamento contemporâneo justifique pelo menos uma porção da sua enorme fama.

LMO

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Strange Days, Kathryn Bigelow, 1995



Strange Days foi, desde o primeiro momento (exibição no Festival de Veneza de 1995), transformado em objecto de “culto”, expressão que, em cinema, é extremamente ambígua, dá para tudo e não quer, em si mesma, dizer nada. Para lá do culto, o filme de Bigelow dividiu opiniões, recolhendo a admiração de alguns e a indiferença de outros, incapazes de ver nele mais do que uma rotineira “americanada”. Disse-se indiferença, podia-se ter dito desprezo: quem viu Aprile, de Nanni Moretti, recorda-se certamente da maneira ácida como o cineasta italiano exprimia o seu desgosto por Strange Days. O fervor dos admiradores do filme não foi, contudo, suficiente para fazer dele um sucesso na bilheteira. Os resultados, a esse nível, ficaram aquém do esperado, e a primeira consequência desse fracasso parece ter sido a interrupção da carreira de Kathryn Bigelow, de quem, desde então, não voltámos a ter notícias. Preservando o direito de cada um a pensar pela sua cabeça, somos daqueles que têm Strange Days na conta de um dos mais importantes filmes americanos dos anos 90 – e por razões que ultrapassam em muito o exercício de “futurologia” nele contido e que justifica a sua inclusão neste ciclo. Este é, aliás, um bom ponto para começarmos: qual é o “futuro” de Strange Days? Pode-se dizer, com propriedade, que esse futuro “é hoje” (a acção começa nas primeiras horas da madrugada do dia 30 de Dezembro de 1999)*, mas também se pode dizer que se trata de um futuro construído a partir de uma intensificação dos sinais daquilo que era o nosso presente em 1995. Ou que continua a ser: a reduzida projecção temporal (apenas 4 anos) que Bigelow escolheu para nos mostrar o “futuro” reforçam a ideia de que o importante, para ela, era falar do “presente”. A Los Angeles do filme está isenta de “futurismos” (vá-se procurar Blade Runner em Blade Runner) e desenha-se a partir de uma hipérbole do presente. Estão lá os medos pré-milenares, mais para dar “ambiente” e exprimirem um ponto de saturação do que para se assumirem como centro do filme; está lá o caos metropolitano, como expressão de um mundo progressivamente descentrado e onde as coordenadas espaciais se diluíram e deixaram de ser factor decisivo (a maneira como Bigelow filma isto talvez tenha qualquer coisa a ver com algum cinema de Hong Kong, com o estilhaçamento da découpage e a frieza da iluminação a corresponderem a essa flutuação, ou a esse desaparecimento de um espaço “sólido”) ; estão lá todas as paranóias, monstros e maravilhas da “sociedade da imagem” deste nosso final de século. Para reforçar tudo isto, a narrativa (ou parte dela) ergue-se sobre um episódio que estava, então, bem fresco na memória: o célebre caso Rodney King, que culminaria nos motins que puseram Los Angeles a ferro e fogo durante várias semanas – em Strange Days, a eminência do “fim do mundo” repousa sobre a eminência da repetição de uma situação semelhante.

A este cenário (afinal, tão estranhamente “realista”), acrescenta Bigelow um ingrediente que – por agora, pelo menos – permanece no domínio da ficção científica: os “squids”, pequenos “clips” hiper-realistas que gravam o que se vê e o que se sente durante determinado espaço de tempo (assim como se fossem uma espécie de “caixa negra” do córtex cerebral), e que permitem a um indivíduo reviver, tintim por tintim, fragmentos da vida de outro indivíduo. Apogeu do “reality show” para consumo individual ou vingança de Edison sobre os Lumière, estes “squids” são também a mais inquietante visão do cinema do século XXI que o cinema do século XX pôde dar. Traficados como se de droga se tratasse (e, no fundo, de droga se trata), Bigelow constroi a partir deles uma reflexão sobre os mecanismos da cinefilia no seu estado mais bruto: não é meramente a “necessidade de imagens” que está em causa, mas a utilização delas como forma de recuperação daquilo que se perdeu ou que nunca se teve – e reparar-se-á que Lenny Nero, a personagem de Ralph Fiennes, se serve dos “squids” para se agarrar ao passado (assim como um “junkie” procura eternamente recuperar as emoções da primeira “pedra”) e conservar a memória do tempo em que foi feliz. Memória vendida em cápsulas, experiência individual tornada enfim partilhável, derradeira distorção dos nossos conceitos de espaço e tempo, ou suprema abolição do corpo como porta aberta para uma existência puramente emocional e sensorial, os “squids” são um objecto (ou um conceito) cujo misto de fascínio/repulsa é habilmente explorado por Bigelow – perdição ou salvação, quando a realidade os inventar decidiremos. Vale a pena frisar, no entanto, que alguns dos momentos mais brilhantes de Strange Days nascem do modo como Bigelow incorpora na narrativa – e na forma – do filme as imagens desses pequenos clips – longe de se limitarem a ser uma “trouvaille” do argumento, eles são parte essencial da mecânica do filme, ora fazendo “avançar” a narrativa ora funcionando como “flash-back” destinado a clarificar os estatutos e as definições das personagens. Última curiosidade a seu respeito: na estrutura pulverizada da planificação do filme, os clips dos “squids” recuperam (ironia das ironias?) a figura do plano-sequência, como se fossem pequenos pedaços de cinema (falsamente) “em bruto”, cuja matriz fundadora talvez esteja (a julgar pelo caldo em que se formou a cinefilia de Bigelow) nos “one shot movies” de Andy Warhol – o que é, pelo menos, uma hipótese divertida. 

Mas Strange Days não seria o que é se não fosse também, muito “classicamente”, um filme de personagens, e se não tivesse lá dentro um triângulo amoroso para desenhar um magnífico melodrama. Três actores de eleição: Ralph Fiennes (de gravatas coloridas e regularmente espancado), Angela Bassett (contraponto ironicamente “masculino” da personagem de Fiennes, é ela que veste o “smoking” e que o salva de ser espancado ainda mais vezes) e, no outro vértice do triângulo, Juliette Lewis em vésperas de entrar para uma clínica de desintoxicação, no papel de uma “pop starlet” em ascensão que interpreta canções de PJ Harvey e tem um estilo de vida possivelmente decalcado do da Courtney Love dos seus “melhores” dias. Com este trio (e mais alguns coadjuvantes) constrói Bigelow uma história de obsessão amorosa (já compararam a personagem de Fiennes à de James Stewart em Vertigo) que se resolve, em aparente “happy end”, na noite da passagem para o ano 2000 – noite em que, de resto, vemos menos a “euforia” do que a electricidade que está no ar, denunciadora de uma violência latente que qualquer pequeno nada pode detonar. Tudo isto é mais do que suficiente para que esqueçamos alguns desequilíbrios e tropeções internos de Strange Days (nobody’s perfect, nem os filmes) e para que fiquemos, com ele, a recordar a chegada do ano 2000.

LMO

*o texto, que se mantém largamente inalterado, foi escrito para a “folha” de uma sessão no dia 30 de Dezembro de 1999, que foi a última sessão da Cinemateca antes da entrada no ano 2000.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Escritos sobre Cinema de João Bénard da Costa Tomo I, 6º Volume (Sagan-Zurlini)





É difícil, para não dizer que é impossível, tentar abranger em poucas palavras e em pouco tempo toda a vastidão de um volume como este, já para não falar de uma colecção de volumes como esta. Ao contrário do que por vezes que se diz ou insinua, o João Bénard da Costa não é sempre igual. É sempre o mesmo, sempre a mesma pessoa, tanto quando se pode dizer de alguém que “é sempre a mesma pessoa”, mas nunca é igual e não há dois textos iguais. Diferentes filmes põem diferentes problemas, que implicam respostas diferentes e, sobretudo, caminhos diferentes para chegar a elas. Os textos do JBC sobre o Hitchcock, por exemplo, são diferentes dos textos do JBC sobre o Ford, por exemplo – problemas diferentes, respostas diferentes, caminhos diferentes. Estes textos são para ser lidos um a um, nenhuma consideração genérica se pode substituir a eles, muito menos eliminar qualquer um deles. Todos tocam qualquer coisa de único e essencial

Mesmo naqueles filmes e cineastas que o JBC não amava, pelo menos da mesma maneira com que amava outros, e que nalguns casos até detestava. Quando falamos dos textos do JBC temos o hábito, que de resto vem por muito boas razões, de nos concentrarmos nos amores dele, e nos textos em que ele mais exuberantemente, mas sempre lucidamente, exprimiu esse amor. Mas o desamor também é importante em alguém que escreve sobre cinema, porque nenhum crítico de cinema (e se esta é uma expressão que se parece adequar pouco a uma figura com a dimensão do JBC, há nobreza suficiente na função de crítico de cinema para que lhe chamemos isso, dizer que ele foi um enorme critico de cinema, sem que isso o apequene e, antes pelo contrário, seja mais um dos elementos da sua grandeza) se define e decide apenas por aquilo de que gosta, porque tão importante como isso é aquilo de que não gosta, ou de que gosta pouco. Até é uma pena, pensei várias vezes, que o JBC não escreva mais sobre o que não aprecia, embora perceba perfeitamente que não o quisesse fazer. Ora justamente um dos aspectos únicos de um volume e de uma colecção como estes é trazer-nos o contacto com o JBC não apenas como sujeito-amante mas também como sujeito-detestante. E ao lado de todos aqueles que o JBC mais amou e ocupam a maior extensão do volume – Schroeter, Sirk, Sjöström, Sokurov, Sternberg, Stiller, Syberberg, Tourneur, Truffaut, Ulmer, King Vidor, Visconti, Walsh, Welles, Whale, Billy Wilder – figuram muitos nomes por quem não tinha nenhuma devoção especial, os Joseph Sargents, os Schlondorffs, os Wim Wenders, os Zeffirellis, ou mesmo alguns esteios da Hollywood clássica como George Stevens, o outro Vidor, Charles, Sam Wood ou William Wyler.

Estes textos são tão importantes como os outros, dão também a ver, ou a ler, como JBC também é irredutível ao espectáculo da adjectivação, essa adjectivação que se tornou parte da sua lenda – o “pasmoso”, o “inadjectivável”, que é o adjectivo que esgota todos os outros adjectivos. No absoluto domínio do seu estilo de escrita, JBC era, claro, um mestre da adjectivação, e ninguém no seu perfeito juízo é capaz de usar adjectivos como esse, pela sensação de estar a usurpar propriedade privada. Mas era muito mais do que isso, e de algo muito mais importante do que isso, era um escritor do substantivo, do substancial, e da substantivação. E se calhar, é nesses textos onde a adjectivação não cabe da mesma maneira que essa substantivação se torna mais evidente.

Desde que o José Manuel Costa me propôs apresentar esta sessão que tenho andado a pensar “e agora, como é que te safas desta?”. E um dia destes em que estava a pensar em como é que me havia de safar desta tropecei, casualmente, numa frase de outro grande escritor de cinema, Louis Skorecki, que aliás já esteve aqui nesta sala. Cito em tradução do francês: “Às vezes escrever sobre cinema é mais importante do que o próprio cinema. Às vezes um texto pode santificar um filme, e fazê-lo existir no mundo”. O seguimento do texto do Skorecki reporta-se uma ideia (que não faz sentido explorar aqui) sobre o Shining do Kubrick e um texto de Jean-Pierre Oudart (diz o Skorecki que sem o texto do Oudart o Shining seria só um pré-Scary Movie). Mas acho que, como me aconteceu, todos nesta sala imediatamente intuem em que é que estas palavras e esta ideias – “santificar um filme”, “fazê-lo existir no mundo” – se aplicam como a luva ao JBC e aos seus textos. E nem me refiro àqueles tempos em que os filmes eram de muito mais difícil acesso do que agora são (ninguém tinha DVDs nem blu-rays em casa, nem havia a internet como grande videoteca cibernética aonde a qualquer momento se pode ir buscar qualquer filme que se deseje ver), e em que havia tantos filmes que nunca tínhamos visto mas que já existiam no nosso mundo porque tínhamos lido o que o JBC tinha escrito sobre eles (e quando finalmente os víamos, as imagens do filme e as palavras do JBC sobrepunham-se, aconteceu-me  com Portrait of Jennie, um filme que só vi algo tardiamente e com uma sensação de déjá vu que vinha, percebi depois, da familiaridade com o texto do JBC). Falo também de todos os filmes que já vimos, e que vimos até várias vezes, e que existem mesmo assim também através da forma como neles ecoam as palavras que lemos ou ouvimos ao JBC. “Santificar um filme” se calhar também é isto: entrar para dentro dele, viver dentro dele como uma memória, como uma outra memória. Creio que não é preciso dar exemplos de casos em que isto aconteceu e acontece, todos nos lembramos, no mínimo dos mínimos, de um caso em que isto aconteceu e continua a acontecer.

E depois, sejamos francos: o cinema tal como o conhecemos está a acabar. Vai passar a ser outra coisa, a própria relação com ele vai ser outra coisaa, e até podem ser coisas interessantíssimas mas não serão a mesma coisa. Ainda há poucos dias, numa entrevista, o Victor Erice falava disso de uma forma lapidar. É minha convicção (e também não vale a pena discuti-la aqui) que em uma ou duas gerações todo este cinema do século XX que foi o fulcro do amor do JBC, e que foi também o cinema que a uma maioria de nós fez amar o cinema, se tornará incompreensível. À medida que se quebre o laço com o século XX, o cinema que guardou a imagem dele, e que se fez da imagem dele, tornar-se-á progressivamente incompreensível, uma coisa bizantina, até intoleravelmente incompreensível e bizantina (e já há amplos sinais disso). Um volume como este garante-nos um outra forma de preservação desta memória, uma forma de, no sentido skoreckiano, santificar essa memória. E faz-me pensar no JBC como uma personagem de um filme sobre o qual escreve neste volume, o Fahrenheit 451 do Truffaut. Como os homens-livro e as mulheres-livro desse filme, o JBC foi um homem-filme. Mas ao contrário das personagens do Truffaut e do Bradbury, ele não decorou apenas um filme, decorou milhares. E com estes volumes, continuará a recitá-los.

Se calhar, nesse filme e nessa folha até há umas breves palavras perfeitas para resumir este volume e esta colecção. “De onde vem a beleza do fogo, Montag?”: esta pergunta é, no fundo, a pergunta que inquieta o JBC em cada texto, e para a qual encontra mil respostas que se calhar são sempre a mesma, uma e só resposta.

E posto isto, vamos ao Shanghai Express.

LMO

(Texto lido na Cinemateca Portuguesa, na sessão de lançamento do 6º volume da colecção Escritos sobre Cinema de João Bénard da Costa Tomo I).

domingo, 3 de novembro de 2024

No Existen Treinta y Seis Maneras de Mostrar Cómo un Hombre se Sube a un Caballo, Nicolás Zukerfeld, 2020

 

Chamemos-lhe “arqueologia da crítica de cinema”. O filme do argentino Nicolás Zukerfeld começa com uma montagem, que ocupa grosso modo a primeira metade da sua duração, de cenas extraídas a filmes de Raoul Walsh. Cenas aglutinadas segundo dois motes: homens (e algumas mulheres também) a montarem cavalos, homens (e algumas mulheres também) a cruzarem portas e portões, para dentro ou para fora do espaço que as portas e os portões delimitam. É um espectáculo soberbo em si mesmo, a que se acrescenta a diferente qualidade das reproduções das cenas, fruto das (im)perfeições dos suportes a que foram extraidas (umas mais vhs, outras mais dvd, outras mais blu-ray), assim salientando o carácter artesanal, “home made”, do empreendimento. A meio, as imagens desaparecem e fica um ecran negro, apenas temporariamente ocupado por imagens dos documentos (fotos, artigos de revistas, citações tiradas de e-mails) mencionados pela voz off – que esta, sim, passa a ser a protagonista. Tudo re-começa com uma citação de Edgardo Cozarinsky (argentino como Zukerfeld) encontrada num artigo sobre Griffith originalmente publicado em 1965 (“Permanência de Griffith”, publicado em português no Catálogo Griffith da Cinemateca, facto aliás mencionado no filme de Zukerfeld embora com alguns equívocos de pormenor), onde se atribui a Raoul Walsh a afirmação de que não existem “36 maneras de mostrar como un hombre se sube a un caballo” ou como “un hombre” entra numa “habitación”. Como um Alan Ladd obcecado com um “rosebud”, Zukerfeld parte à procura da fonte exacta da frase de Walsh citada por Cozarinsky, através de conversas, contactos electrónicos e uma multitude de pistas documentais. De caminho, soluciona o mistério do número 36 (que só é mistério para quem não conheça o valor que ele tem enquanto expressão idiomática francófona ou, pelo menos, francesa), e se se aproxima cada vez mais dessa frase exacta não será “spoiler” nenhum dizer que nunca a encontra – a possibilidade de ela nunca ter sido proferida exactamente assim é, obviamente, conservada em aberto, e constitui-se como uma das razões de ser do filme. E é uma razão de ser do filme porque ele repousa num mergulho não apenas na tradição crítica (especificamente, a tradição crítica francesa), mas sobretudo no trabalho dos pioneiros de uma “história oral” do cinema clássico – e por isso uma entrevista de Louis Skorecki a Raoul Walsh, feita durante a célebre viagem dele e de Daney a Hollywood, ambos ainda adolescentes ou quase, para uma série de entrevistas com nomes da Hollywood antiga que até então poucos se tinham preocupado em ouvir, se revela, entre outros documentos, fundamental. Em filigrana, e como uma lógica de filme de mistério (mas sempre “em diferido”, sempre em “racconto”), esse é o verdadeiro tema do trabalho de Zukerfeld: a espantosa fragilidade, ou mesmo fugacidade (dada a quantidade de textos e documentos publicada em revistas, jornais, panfletos, etc, destinados a não durarem), das fontes e dos registos “primários” sobre tantos dos protagonistas mais essenciais do cinema clássico americano. Não será, como no filme de Ford, um caso em que a “legend” se sobrepõe ao “fact”; mas se o facto se tornou inacessível, ou acessível apenas através da lenda, e se a lenda nos propõe a justeza suficiente para enformar uma concepção do “ethos” dos cineastas clássicos, então a lenda tem mesmo o valor de um “rosebud”.

LMO

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Iyulskiy Dozhd ("Chuva de Julho"), Marlen Khutsiev, 1967

 


A cena crucial de Chuva de Julho é aquela, perto do final, em que a protagonista e o namorado dialogam sem olhar um para o outro – estão lado a lado, a olhar para a câmara perante um fundo envidraçado – e ela conclui: “o que eu nunca vou conseguir explicar é porque é que, apesar de todas as tuas maravilhosas qualidades, não me vou casar contigo”. Não se consegue assistir a essa cena, ou a esse fecho de cena, sem um aperto no peito, não tanto pelo que Lena diz mas pela tão delicada como definitiva firmeza com que o diz. Todo o filme de Khutsiev se funda sobre este afastamento – esta “alienação”, para usar um termo antonioniano aqui muito a propósito tão clara parece a influência sobre Khutsiev de filmes como La Notte ou L’Eclisse – e sobre o vazio explicativo que lhe subjaz, traduzido por uma melancolia indefinível que atravessa tudo e se torna, de certo modo, no grande tema do filme.

“Crónica geracional”, dizem-nos, centrada na geração que tinha vinte e tal anos nos anos 60 e crescera já depois da II guerra, depois de Estaline, etc. Os filmes de Khutsiev, que começara a filmar no final dos anos 50, são normalmente apontados como exemplares do cinema soviético do “degelo”, juntamente com títulos muito mais célebres, mas não necessariamente melhores, como a Balada do Soldado de Chukhrai ou o Quando Passam as Cegonhas de Kalatozov. Chuva de Julho é obviamente um filme duma desilusão, e duma desilusão que conduz a uma tomada de consciência, corporizada por essa cena que citámos. Não custa crer que, socialmente, ou mesmo politicamente, as implicações do discurso fossem incómodas: seleccionado para o Festival de Veneza, o filme de Khutsiev nunca lá chegou porque as autoridades soviéticas se recusaram a deixar sair qualquer cópia do filme. Constrangimento, ainda assim, mais suave do que o que recaiu sobre o filme anterior de Khutsiev, A Porta de Ilyich, liminarmente proibido e alvo da ira de Kruschev em pessoa.

Há um pormenor curioso logo nos primeiros momentos, durante aquele portentoso genérico feito de sucessivos travellings sobre ruas de Moscovo, alternadas com imagens de quadros de da Vinci (a primeira referência italiana do filme, que parece imbuído de “italianismo”, e não só Antonioni) e, na banda sonora, uma rádio a saltitar de estação em estação. Numa dessas estações ouve-se um relato de futebol e dá ideia, a um não-falante de russo, que se trata de um Portugal-URSS – o jogo em que as duas selecções se defrontaram durante o Mundial de 1966, disputado no mês de Julho? Esta datação da cronologia do filme, que rima, de resto, com as imagens, perto do fim, de uma cerimónia de antigos combatentes (quase de certeza em celebração do 25ª aniversário do começo da “Grande Guerra Patriótica”, a luta contra os invasores nazis da URSS), esta datação do filme, dizíamos, é perfeitamente coerente com o outro aspecto impressionante que ele tem: a sua pulsão, chamemos-lhe assim, para o documentário. Independentemente de quaisquer outras razões ou motivações, Chuva de Julho é um grandíssimo filme sobre uma cidade precisa, Moscovo, num tempo preciso, o verão de 1966. Como escreveu um comentador russo, se lhe retirássemos os planos não-narrativos, as vistas de Moscovo, os travellings por Moscovo, as imagens dos transeuntes e dos rostos dos transeuntes, os café e as lojas, se lhe tirássemos isto Chuva de Julho passava a ser uma curta-metragem. O que não quer dizer que devamos dissociar, como se fossem dois filmes diferentes, a narrativa e o documento: eles embrulham-se, imiscuem-se, influenciam-se, e é pela sua combinação que a melancolia com que Khutsiev olha tudo se torna tão poderosa. E também tão indefinível: como ver – sinal de esperança? mera compaixão? – aquele paralítico sobre o rosto do miúdo com que o filme se encerra, como se Khutsiev tivesse encontrado, por entre a multidão moscovita, o seu pequeno Antoine Doinel?

LMO