segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Escritos sobre Cinema de João Bénard da Costa Tomo I, 6º Volume (Sagan-Zurlini)





É difícil, para não dizer que é impossível, tentar abranger em poucas palavras e em pouco tempo toda a vastidão de um volume como este, já para não falar de uma colecção de volumes como esta. Ao contrário do que por vezes que se diz ou insinua, o João Bénard da Costa não é sempre igual. É sempre o mesmo, sempre a mesma pessoa, tanto quando se pode dizer de alguém que “é sempre a mesma pessoa”, mas nunca é igual e não há dois textos iguais. Diferentes filmes põem diferentes problemas, que implicam respostas diferentes e, sobretudo, caminhos diferentes para chegar a elas. Os textos do JBC sobre o Hitchcock, por exemplo, são diferentes dos textos do JBC sobre o Ford, por exemplo – problemas diferentes, respostas diferentes, caminhos diferentes. Estes textos são para ser lidos um a um, nenhuma consideração genérica se pode substituir a eles, muito menos eliminar qualquer um deles. Todos tocam qualquer coisa de único e essencial

Mesmo naqueles filmes e cineastas que o JBC não amava, pelo menos da mesma maneira com que amava outros, e que nalguns casos até detestava. Quando falamos dos textos do JBC temos o hábito, que de resto vem por muito boas razões, de nos concentrarmos nos amores dele, e nos textos em que ele mais exuberantemente, mas sempre lucidamente, exprimiu esse amor. Mas o desamor também é importante em alguém que escreve sobre cinema, porque nenhum crítico de cinema (e se esta é uma expressão que se parece adequar pouco a uma figura com a dimensão do JBC, há nobreza suficiente na função de crítico de cinema para que lhe chamemos isso, dizer que ele foi um enorme critico de cinema, sem que isso o apequene e, antes pelo contrário, seja mais um dos elementos da sua grandeza) se define e decide apenas por aquilo de que gosta, porque tão importante como isso é aquilo de que não gosta, ou de que gosta pouco. Até é uma pena, pensei várias vezes, que o JBC não escreva mais sobre o que não aprecia, embora perceba perfeitamente que não o quisesse fazer. Ora justamente um dos aspectos únicos de um volume e de uma colecção como estes é trazer-nos o contacto com o JBC não apenas como sujeito-amante mas também como sujeito-detestante. E ao lado de todos aqueles que o JBC mais amou e ocupam a maior extensão do volume – Schroeter, Sirk, Sjöström, Sokurov, Sternberg, Stiller, Syberberg, Tourneur, Truffaut, Ulmer, King Vidor, Visconti, Walsh, Welles, Whale, Billy Wilder – figuram muitos nomes por quem não tinha nenhuma devoção especial, os Joseph Sargents, os Schlondorffs, os Wim Wenders, os Zeffirellis, ou mesmo alguns esteios da Hollywood clássica como George Stevens, o outro Vidor, Charles, Sam Wood ou William Wyler.

Estes textos são tão importantes como os outros, dão também a ver, ou a ler, como JBC também é irredutível ao espectáculo da adjectivação, essa adjectivação que se tornou parte da sua lenda – o “pasmoso”, o “inadjectivável”, que é o adjectivo que esgota todos os outros adjectivos. No absoluto domínio do seu estilo de escrita, JBC era, claro, um mestre da adjectivação, e ninguém no seu perfeito juízo é capaz de usar adjectivos como esse, pela sensação de estar a usurpar propriedade privada. Mas era muito mais do que isso, e de algo muito mais importante do que isso, era um escritor do substantivo, do substancial, e da substantivação. E se calhar, é nesses textos onde a adjectivação não cabe da mesma maneira que essa substantivação se torna mais evidente.

Desde que o José Manuel Costa me propôs apresentar esta sessão que tenho andado a pensar “e agora, como é que te safas desta?”. E um dia destes em que estava a pensar em como é que me havia de safar desta tropecei, casualmente, numa frase de outro grande escritor de cinema, Louis Skorecki, que aliás já esteve aqui nesta sala. Cito em tradução do francês: “Às vezes escrever sobre cinema é mais importante do que o próprio cinema. Às vezes um texto pode santificar um filme, e fazê-lo existir no mundo”. O seguimento do texto do Skorecki reporta-se uma ideia (que não faz sentido explorar aqui) sobre o Shining do Kubrick e um texto de Jean-Pierre Oudart (diz o Skorecki que sem o texto do Oudart o Shining seria só um pré-Scary Movie). Mas acho que, como me aconteceu, todos nesta sala imediatamente intuem em que é que estas palavras e esta ideias – “santificar um filme”, “fazê-lo existir no mundo” – se aplicam como a luva ao JBC e aos seus textos. E nem me refiro àqueles tempos em que os filmes eram de muito mais difícil acesso do que agora são (ninguém tinha DVDs nem blu-rays em casa, nem havia a internet como grande videoteca cibernética aonde a qualquer momento se pode ir buscar qualquer filme que se deseje ver), e em que havia tantos filmes que nunca tínhamos visto mas que já existiam no nosso mundo porque tínhamos lido o que o JBC tinha escrito sobre eles (e quando finalmente os víamos, as imagens do filme e as palavras do JBC sobrepunham-se, aconteceu-me  com Portrait of Jennie, um filme que só vi algo tardiamente e com uma sensação de déjá vu que vinha, percebi depois, da familiaridade com o texto do JBC). Falo também de todos os filmes que já vimos, e que vimos até várias vezes, e que existem mesmo assim também através da forma como neles ecoam as palavras que lemos ou ouvimos ao JBC. “Santificar um filme” se calhar também é isto: entrar para dentro dele, viver dentro dele como uma memória, como uma outra memória. Creio que não é preciso dar exemplos de casos em que isto aconteceu e acontece, todos nos lembramos, no mínimo dos mínimos, de um caso em que isto aconteceu e continua a acontecer.

E depois, sejamos francos: o cinema tal como o conhecemos está a acabar. Vai passar a ser outra coisa, a própria relação com ele vai ser outra coisaa, e até podem ser coisas interessantíssimas mas não serão a mesma coisa. Ainda há poucos dias, numa entrevista, o Victor Erice falava disso de uma forma lapidar. É minha convicção (e também não vale a pena discuti-la aqui) que em uma ou duas gerações todo este cinema do século XX que foi o fulcro do amor do JBC, e que foi também o cinema que a uma maioria de nós fez amar o cinema, se tornará incompreensível. À medida que se quebre o laço com o século XX, o cinema que guardou a imagem dele, e que se fez da imagem dele, tornar-se-á progressivamente incompreensível, uma coisa bizantina, até intoleravelmente incompreensível e bizantina (e já há amplos sinais disso). Um volume como este garante-nos um outra forma de preservação desta memória, uma forma de, no sentido skoreckiano, santificar essa memória. E faz-me pensar no JBC como uma personagem de um filme sobre o qual escreve neste volume, o Fahrenheit 451 do Truffaut. Como os homens-livro e as mulheres-livro desse filme, o JBC foi um homem-filme. Mas ao contrário das personagens do Truffaut e do Bradbury, ele não decorou apenas um filme, decorou milhares. E com estes volumes, continuará a recitá-los.

Se calhar, nesse filme e nessa folha até há umas breves palavras perfeitas para resumir este volume e esta colecção. “De onde vem a beleza do fogo, Montag?”: esta pergunta é, no fundo, a pergunta que inquieta o JBC em cada texto, e para a qual encontra mil respostas que se calhar são sempre a mesma, uma e só resposta.

E posto isto, vamos ao Shanghai Express.

LMO

(Texto lido na Cinemateca Portuguesa, na sessão de lançamento do 6º volume da colecção Escritos sobre Cinema de João Bénard da Costa Tomo I).

domingo, 3 de novembro de 2024

No Existen Treinta y Seis Maneras de Mostrar Cómo un Hombre se Sube a un Caballo, Nicolás Zukerfeld, 2020

 

Chamemos-lhe “arqueologia da crítica de cinema”. O filme do argentino Nicolás Zukerfeld começa com uma montagem, que ocupa grosso modo a primeira metade da sua duração, de cenas extraídas a filmes de Raoul Walsh. Cenas aglutinadas segundo dois motes: homens (e algumas mulheres também) a montarem cavalos, homens (e algumas mulheres também) a cruzarem portas e portões, para dentro ou para fora do espaço que as portas e os portões delimitam. É um espectáculo soberbo em si mesmo, a que se acrescenta a diferente qualidade das reproduções das cenas, fruto das (im)perfeições dos suportes a que foram extraidas (umas mais vhs, outras mais dvd, outras mais blu-ray), assim salientando o carácter artesanal, “home made”, do empreendimento. A meio, as imagens desaparecem e fica um ecran negro, apenas temporariamente ocupado por imagens dos documentos (fotos, artigos de revistas, citações tiradas de e-mails) mencionados pela voz off – que esta, sim, passa a ser a protagonista. Tudo re-começa com uma citação de Edgardo Cozarinsky (argentino como Zukerfeld) encontrada num artigo sobre Griffith originalmente publicado em 1965 (“Permanência de Griffith”, publicado em português no Catálogo Griffith da Cinemateca, facto aliás mencionado no filme de Zukerfeld embora com alguns equívocos de pormenor), onde se atribui a Raoul Walsh a afirmação de que não existem “36 maneras de mostrar como un hombre se sube a un caballo” ou como “un hombre” entra numa “habitación”. Como um Alan Ladd obcecado com um “rosebud”, Zukerfeld parte à procura da fonte exacta da frase de Walsh citada por Cozarinsky, através de conversas, contactos electrónicos e uma multitude de pistas documentais. De caminho, soluciona o mistério do número 36 (que só é mistério para quem não conheça o valor que ele tem enquanto expressão idiomática francófona ou, pelo menos, francesa), e se se aproxima cada vez mais dessa frase exacta não será “spoiler” nenhum dizer que nunca a encontra – a possibilidade de ela nunca ter sido proferida exactamente assim é, obviamente, conservada em aberto, e constitui-se como uma das razões de ser do filme. E é uma razão de ser do filme porque ele repousa num mergulho não apenas na tradição crítica (especificamente, a tradição crítica francesa), mas sobretudo no trabalho dos pioneiros de uma “história oral” do cinema clássico – e por isso uma entrevista de Louis Skorecki a Raoul Walsh, feita durante a célebre viagem dele e de Daney a Hollywood, ambos ainda adolescentes ou quase, para uma série de entrevistas com nomes da Hollywood antiga que até então poucos se tinham preocupado em ouvir, se revela, entre outros documentos, fundamental. Em filigrana, e como uma lógica de filme de mistério (mas sempre “em diferido”, sempre em “racconto”), esse é o verdadeiro tema do trabalho de Zukerfeld: a espantosa fragilidade, ou mesmo fugacidade (dada a quantidade de textos e documentos publicada em revistas, jornais, panfletos, etc, destinados a não durarem), das fontes e dos registos “primários” sobre tantos dos protagonistas mais essenciais do cinema clássico americano. Não será, como no filme de Ford, um caso em que a “legend” se sobrepõe ao “fact”; mas se o facto se tornou inacessível, ou acessível apenas através da lenda, e se a lenda nos propõe a justeza suficiente para enformar uma concepção do “ethos” dos cineastas clássicos, então a lenda tem mesmo o valor de um “rosebud”.

LMO

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Iyulskiy Dozhd ("Chuva de Julho"), Marlen Khutsiev, 1967

 


A cena crucial de Chuva de Julho é aquela, perto do final, em que a protagonista e o namorado dialogam sem olhar um para o outro – estão lado a lado, a olhar para a câmara perante um fundo envidraçado – e ela conclui: “o que eu nunca vou conseguir explicar é porque é que, apesar de todas as tuas maravilhosas qualidades, não me vou casar contigo”. Não se consegue assistir a essa cena, ou a esse fecho de cena, sem um aperto no peito, não tanto pelo que Lena diz mas pela tão delicada como definitiva firmeza com que o diz. Todo o filme de Khutsiev se funda sobre este afastamento – esta “alienação”, para usar um termo antonioniano aqui muito a propósito tão clara parece a influência sobre Khutsiev de filmes como La Notte ou L’Eclisse – e sobre o vazio explicativo que lhe subjaz, traduzido por uma melancolia indefinível que atravessa tudo e se torna, de certo modo, no grande tema do filme.

“Crónica geracional”, dizem-nos, centrada na geração que tinha vinte e tal anos nos anos 60 e crescera já depois da II guerra, depois de Estaline, etc. Os filmes de Khutsiev, que começara a filmar no final dos anos 50, são normalmente apontados como exemplares do cinema soviético do “degelo”, juntamente com títulos muito mais célebres, mas não necessariamente melhores, como a Balada do Soldado de Chukhrai ou o Quando Passam as Cegonhas de Kalatozov. Chuva de Julho é obviamente um filme duma desilusão, e duma desilusão que conduz a uma tomada de consciência, corporizada por essa cena que citámos. Não custa crer que, socialmente, ou mesmo politicamente, as implicações do discurso fossem incómodas: seleccionado para o Festival de Veneza, o filme de Khutsiev nunca lá chegou porque as autoridades soviéticas se recusaram a deixar sair qualquer cópia do filme. Constrangimento, ainda assim, mais suave do que o que recaiu sobre o filme anterior de Khutsiev, A Porta de Ilyich, liminarmente proibido e alvo da ira de Kruschev em pessoa.

Há um pormenor curioso logo nos primeiros momentos, durante aquele portentoso genérico feito de sucessivos travellings sobre ruas de Moscovo, alternadas com imagens de quadros de da Vinci (a primeira referência italiana do filme, que parece imbuído de “italianismo”, e não só Antonioni) e, na banda sonora, uma rádio a saltitar de estação em estação. Numa dessas estações ouve-se um relato de futebol e dá ideia, a um não-falante de russo, que se trata de um Portugal-URSS – o jogo em que as duas selecções se defrontaram durante o Mundial de 1966, disputado no mês de Julho? Esta datação da cronologia do filme, que rima, de resto, com as imagens, perto do fim, de uma cerimónia de antigos combatentes (quase de certeza em celebração do 25ª aniversário do começo da “Grande Guerra Patriótica”, a luta contra os invasores nazis da URSS), esta datação do filme, dizíamos, é perfeitamente coerente com o outro aspecto impressionante que ele tem: a sua pulsão, chamemos-lhe assim, para o documentário. Independentemente de quaisquer outras razões ou motivações, Chuva de Julho é um grandíssimo filme sobre uma cidade precisa, Moscovo, num tempo preciso, o verão de 1966. Como escreveu um comentador russo, se lhe retirássemos os planos não-narrativos, as vistas de Moscovo, os travellings por Moscovo, as imagens dos transeuntes e dos rostos dos transeuntes, os café e as lojas, se lhe tirássemos isto Chuva de Julho passava a ser uma curta-metragem. O que não quer dizer que devamos dissociar, como se fossem dois filmes diferentes, a narrativa e o documento: eles embrulham-se, imiscuem-se, influenciam-se, e é pela sua combinação que a melancolia com que Khutsiev olha tudo se torna tão poderosa. E também tão indefinível: como ver – sinal de esperança? mera compaixão? – aquele paralítico sobre o rosto do miúdo com que o filme se encerra, como se Khutsiev tivesse encontrado, por entre a multidão moscovita, o seu pequeno Antoine Doinel?

LMO

sábado, 12 de outubro de 2024

Megalopolis, Francis Ford Coppola, 2024

 


Se há um filme que paira sobre “Megalopolis” - quer dizer, não “paira”, que é bengala de expressão, é exactamente o contrário, está por baixo dele, é a ruína soterrada sobre a qual “Megalopolis” caminha – esse filme é obviamente o “Metropolis” de Fritz Lang. Lang fez o seu filme no caos de Weimar, Coppola fez o seu filme no caos dos nossos anos 20, que ainda não tem nome. Ambos se debatem com a resposta ao caos, e daí vem a utopia de ordem representada pela cidade ideal. Utopia/distopia: “uma distopia é uma utopia realizada”, diz-se algures no filme de Coppola. Lang já o sabia, o “Metropolis” é isso, menos uma premonição do nazismo que em 1927 estava a seis anos de chegar do que um aviso abstracto contra os perigos da ordem e da utopia. A resposta tinha que estar noutro lado, e esse lado é aquele em que “Metropolis” e “Megalopolis” mais espectacularmente se encontram. “O coração tem que ser o mediador entre a cabeça e as mãos”, propunham as personagens de Lang, naquele final em suspensão que não equivalia a mais do que um apelo a que homens e mulheres redescobrissem (digamos a palavra: o Amor) que o melhor que a Humanidade tem está nesse filtro entre o que a cabeça pensa e o que as mãos fazem. Numa suspensão semelhante, e numa cena com imensos paralelismos com o final de “Metropolis”, encontra uma figura para representar a necessidade de tal mediação: o recém-nascido. “Megalopolis” propõe-nos, simplesmente, que saibamos estar à altura do futuro daquele bebé. Os contemporâneos de Lang fizeram troça do final de “Metropolis”, que lhes pareceu uma foleirice; os contemporâneos de Coppola fazem troça do final de “Megalopolis”, que lhes pareceu uma foleirice. Em cem anos, não aprendemos nada (“Megalopolis”, em parte, também é sobre isso).

O Coppola de “Megalopolis” é daqueles que acham que o “seu tempo” só pode ser contado como uma farsa. A ter de decidir qual é o “género” de “Megalopolis”, diria que é uma farsa, provavelmente o género narrativo mais em desuso de todos – e é também isso, diria, que justifica o envolvimento do filme numa versão teatral da Roma antiga, dada por notações, no “verismo” do teatro mais do que no “realismo” do cinema, uma Roma antiga filtrada por outros que contaram “o seu tempo” enquanto farsa, como Shakespeare ou os próprios romanos (ainda que por interposto Fellini, a ideia de que “Megalopolis” é o “Satyricon” de Coppola não me abandona). O duelo entre o “verismo” e o “realismo” é para mim das coisas mais fascinantes do filme, até porque, num filme tão excessivo e tão pouco económico (já lá vou), a condução desse duelo, que transforma tudo (narrativa, personagens, espaços) em afirmação e comentário da afirmação permanentes (tudo é o que é e, ao mesmo tempo, é o lastro do que é), em que tudo é como uma moeda que tem um valor facial e um valor simbólico inseparáveis mesmo quando contraditórios, isto dizia, é a âncora metódica e sistemática que segura o filme e aonde ele regressa depois de cada devaneio. A Antiguidade, mas também o teatro, tornam-se uma perspectiva, um miradouro, um ponto de vantagem – de onde Coppola olha o “seu tempo”, o “seu país”, e também a sua obra, estando “Megalopolis” tão cheio de reflexos dela, dos “Padrinhos” (a personagem do patriarca Jon Voight é uma variação sobre os Corleones, Vito ou Michael) ao “Tucker” (Adam Driver, o arquitecto “e o seu sonho”, é um parente do Jeff Bridges desse filme).

De certa forma, e penso que isto tem sido amplamente notado, “Megalopolis”, ou a Megalopolis-cidade, são também sobre o sonho de Coppola. O que o dinheiro da bilheteira enterrou, que o dinheiro do vinho desenterre, com o esplendor da descoberta de uma ruína da Roma antiga: a Zoetrope. Os 120 milhões que Coppola torrou em “Megalopolis” são uma espécie de vingança contra sua própria falência. E não há melhor nem mais megalopólica vingança do reconstituir num só filme toda a Zoetrope. “Megalopolis” é a maquete em tamanho real, 1/1, do sonho de cinema e de arrogante liberdade que presidia à Zoetrope: ser todo o cinema, toda a memória, todos os “autores”. Todos os “autores”, sobretudo os europeus, que Coppola sonhava convidar para o seu entreposto de autores vindos do mundo inteiro, e que por lá chegaram a andar, de Michael Powell (a presença dele e dos filmes da Archers, como “A Matter of Life and Death”, essa acho que não tem sido muito notada, mas parece-me evidente) a Jean-Luc Godard, sem que os seus projectos tenham dado fruto. Mas é como se a louca ambição coppoliana aproveitasse “Megalopolis” para os fazer também, na versão 120 milhões de uma ideia (a ideia de Coppola e dos americanos da geração de Coppola) de “cinema de autor” europeu. “Megalopolis”, se lhe tirarmos a casca, lembra imenso a mecânica, numa escala de produção ampliada (ampliadíssima), os Godards dos anos 80: a narração descontínua, a mesma dobra entre verismo e realismo e entre valor facial e valor simbólico, as ressonâncias “culturalistas”, o uso do burlesco, a integração do ruído. Disse algures que “Megalopolis” me fazia lembrar um “Soigne ta Droite” com 120 milhões de dólares, mas devia ter dito que ela era, por um conjunto de razões que basta o título para apontar, como o “Rei Lear” (que já agora, produzido pela bizarríssima Cannon de Golan e Globus, foi tecnicamente o “filme americano” que Godard não conseguiu fazer para Coppola, ou que Coppola não conseguiu que Godard lhe desse).

A integração do ruído. Do ruído, do excesso, do lixo, do resíduo. Penso que está aí, finalmente, aquilo que acho mais genial em “Megalopolis”. Coppola não crê que para dar o “seu tempo” seja preciso limpá-lo, remover-lhe o ruido e o lixo à procura de uma vista clara e desimpedida. Acredita, pelo contrário, que o “tempo” se define mais pelo ruído e pelo excesso de matéria residual do que por um suposto núcleo purificado que se atingiria depois de removido o entulho. “Megalopolis” não remove o entulho, integra-o – não precisamos de tirar Trump, a extrema-direita, a internet, os influencers, a música pop de massas, uma cultura barulhenta e superficial, para ver o “nosso tempo”. Precisamos disso tudo, porque é isso que define, mais do que outra coisa qualquer, o “nosso tempo” - 2024, ponhamos-lhe uma data. É um mata-borrão: se a realidade é a tinta, a câmara de Coppola é o mata-borrão, e “Megalopolis” as manchas disformes que ficam impressas no papel do mata-borrão.


sábado, 27 de janeiro de 2024

Kangwon-Do Ui Him ("O Poder da Província de Kangwon"), Hong Sang-Soo, 1998

 


A província de Kangwon (pelo meio da qual passa o paralelo que dividiu as Coreias) é uma região montanhosa mas simultaneamente costeira, oferecendo assim “montanha” e “praia” numa questão de centenas de metros. Qualidades que fizeram dela um pólo turístico importante para os coreanos, sobretudo para os habitantes da capital Seoul (que fica relativamente perto). Qual é o seu “poder” especial, então? Aparentemente nenhum, a julgar pelo destino das personagens do filme de Hong Sang-soo – o título do filme é bastante irónico, jogando com as expectativas de “evasão” das suas personagens, que procuram a província de Kangwon para mudarem de ares e tentarem remediar as suas dores de alma. Profundamente melancólico (às vezes, brutalmente melancólico), e atravessado por um manso desespero que “ensopa” as personagens sem que ninguém (nem elas nem o realizador) precise de o gritar, “O Poder da Província de Kangwon” é uma crónica da desolação sentimental, gizada numa espécie de urbanismo desenraizado (como alguém notou, podíamos perfeitamente estar em plena cidade, em Seoul por exemplo) que ao invés de se deixar invadir pela despreocupação “turística” de Kangwon a invade a ela. Os agentes dessa invasão são o par protagonista – que precisamos de tempo para apreender enquanto par, pois Hong Sang-soo oferece meio-filme a cada um deles. Começamos pela rapariga, que apanhamos no comboio em trânsito para Kangwon, mudamos a meio para o homem, que também vai nesse comboio, num processo que não é bem um “flash back” mas antes qualquer coisa parecida com uma “montagem paralela em sequência” – a rapariga e o homem andam ao mesmo tempo por Kangwon, mas não se cruzam, embora haja encontros (com sítios e pessoas) em comum. Ele foi professor dela, e tiveram uma relação. Acabou, e lembraram-se do mesmo para curar o coração partido. “O Poder da Província de Kangwon” mostra o paralelismo desse movimento (e da sua frustração), mas em vez de procurar rimas instantâneas e paralelismos imediatas opta por uma estrutura em que as rimas surgem desfasadas, e precisam de tempo para se revelarem.

Um pouco por isso, o filme funciona numa progressão entre o “anódino” e o que, não chegando a ser “dramático” (ou pelo menos “melodramático”), constitui um clímax no aumento da gravidade do tom – um esvaziamento absoluto, quase sem sentido, friamente exposto, que revela o par de personagens enquanto “figuras da frustração”. A história da rapariga com o polícia rima com o episódio do homem com a prostituta (que termina, aliás, numa desolada cena de sexo – “despacha-te que estou com pressa”). Hong Sang-soo, no que é uma das medidas mais evidentes do seu brilhantismo de cineasta, filma tudo da mesma maneira (planos fixos, enquadramentos “horizontais”), fazendo equivaler o que é “anódino” (um grupo de raparigas, na praia, a cantar e a discutir a letra de “My Darling Clementine” – Hong Sang-soo é alguém que conhece a história do cinema) e o que não é (as cenas de sexo), como se todas as acções das personagens fossem gestos condenados à irrelevância, mera agitação, mero preencher do tempo, face à imponência da perda sentimental que as subjuga. “O Poder da Província de Kangwon” trabalha em dissipação e abandono, mesmo quando parece estar a trabalhar em “escalada” – as montanhas de Kangwon são uma imagem constante (e, no fim, narrativamente importante), mas é como se Hong Sang-soo filmasse para a contrariar, e a linha de força do seu filme fosse, afinal, desesperadamente horizontal.

Citámos algumas cenas, podíamos citar outras (quase sempre “planos-cena”, sem chegarem a ser “planos-sequência”). Quando o homem conta ao amigo o que fez e por onde andou numa viagem passada a Kangwon com a namorada, e o amigo comenta “nunca volto a sítios onde tenha estado com namoradas”. Ou a cena do restaurante onde, a pedido, a canção de Lou Reed passa em “loop” na instalação sonora. Os tempos de corte desses planos são um bom exemplo da secura da montagem de Hong, par perfeito para a neutralidade isenta de sublinhados da sua câmara: ainda o espectador não se apercebeu da carga emocional subjacente ao que se diz e faz em determinado plano, e o realizador já “cortou” e o levou para o plano seguinte. Hong Sang-soo é um notável cineasta.

LMO

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Ossos, Pedro Costa, 1997

 


Em Casa de Lava, o anterior filme de Pedro Costa, ouvia-se da boca de um cabo-verdiano em trânsito para Portugal uma frase aparentemente anódina mas que adquiria, de súbito, proporções quase trágicas: “Quero morrer em Sacavém”. A frase, dita com o tom de quem fala de um sonho, era arrepiante, mas era preciso estar cá, deste lado, para o perceber - e por sabermos que a única coisa que podíamos oferecer a quem sonhava assim era, bem pelo contrário, um pesadelo. Ossos, filme onde o Cabo Verde de Casa de Lava faz “raccord” com o miserável Bairro das Fontainhas, nos arrabaldes de Lisboa, é o filme desse pesadelo.

Pesadelo. A palavra é curta para descrever todo o alcance de Ossos, mas suficiente para o arrancar, desde já, ao fardo representado por toda a gama de “obrigações sociológicas” que alguns nele viram ou gostariam de ter visto. E importante, para evitar mal-entendidos, que isso se esclareça: Ossos não é um “documentário”, mas antes uma espécie de fábula, com não poucas alusões mitológicas variadas, sobre um mundo fechado mas sem centro, com tendência a expandir-se para lá das suas fronteiras, num movimento que dilui e consome tudo e todos à sua passagem. Como uma doença, de alma e de corpo, que avança insidiosamente até que percebemos que é tarde de mais e que ela nos rodeia. Em Ossos não há o conforto da distância nem é visível a linha que estabelece a separação entre “nós” e “eles”: quando vemos, através das mulheres a dias, a arrumação fria, higienizada e desalmada das “nossas” casas, percebemos, com um arrepio, que a tangente se dissolveu e que é tudo o mesmo. Muito mais do que uma estocada na má-consciência burguesa, Ossos é um filme que transforma o mundo numa parada de “zombies”, de “mortos em licença” - e o “bairro” é, aqui, todo o mundo. Como afirmou Pedro Costa em entrevista à revista francesa Les Inrockuptibles, “é como na Idade Média, tudo se torna numa espécie de território que não começa pelo centro mas pelo exterior, e começa a avançar por contágio. No filme, há qualquer coisa de muito doente que começa a invadir tudo (...); não há muita diferença entre os negros do bairro e os brancos da média burguesia: é a mesma coisa, os mesmos gostos, as mesmas ambições”. Ossos é o filme que obscurece o mundo para iluminar esta equivalência.

É por isso que, ao contrário de Casa de Lava, onde existia a personagem de Inês de Medeiros para nos guiar, em Ossos estamos, desde o primeiro plano, absolutamente sós e absolutamente dentro - ao contrário desse filme a identificação é aqui um acto forçado e incómodo. Uma vez “dentro” não se sai, transporta-se o bairro (e o “bairro” continua aqui a ser metáfora de muita coisa) no corpo. Vê-se isso muito bem naquele espantoso “travelling” onde Pedro Costa desafia todos os critérios formais que escolheu para o filme, e que mostra a caminhada de Nuno Vaz ao longo das intermináveis fachadas do bairro: como se toda a duração do plano mais não fizesse do que pôr em evidência que quanto mais se anda mais “dentro” se está. Não há fuga possível, o bairro estende-se como se fosse móvel e, o que é mais grave, como se operasse um poderoso efeito de sucção.

De resto, “sugada” é a personagem da enfermeira interpretada por Isabel Ruth: desde o princípio uma personagem associada à “doença”, acabará por ser totalmente conquistada por ela e para ela. Como se se tratasse de uma verdadeira dissolução, no último plano em que aparece já não lhe vemos o corpo, ouvimos-lhe apenas a voz; e numa confirmação da sua entrega, essa derradeira cena da personagem deixa em elipse a sua cedência ao “flirt” movido pelo marido de Clotilde.

Se há uma personagem que faz o movimento inverso é a do bebé, que anda de mãos em mãos até ao momento em que é oferecido à personagem de Inês de Medeiros. E possível resumir a narrativa de Ossos (ou pelo menos parte dela) a essa permanente circulação do bebé, entre aqueles que o querem matar (a própria mãe) e os que o querem salvar (o pai). Mas esse bebé é aqui sobretudo um símbolo, espécie de “semente do mal” (é por isso que a mãe o quer matar) cuja vida representa apenas a consumação ou a confirmação do avanço da “doença” - quando Inês de Medeiros, personagem estranha ao bairro, aceita ficar com a criança, percebemos que essa doença- conquistou mais algum terreno.

Olhar desesperado sobre a existência humana (ou já pós-humana: foi o próprio Pedro Costa quem falou das suas personagens e dos seus actores como “mutantes”), que transforma homens e mulheres em seres subterrâneos que por vezes fazem lembrar o “povo das trevas” mostrado pela Múmia do egípcio Shadi Abd As Salam, Ossos constrói para isso uma prodigiosa estrutura formal. Duas ou três coisas fundamentais passam exclusivamente, ou quase, por ela: a ausência de profundidade, como se o campo de visão estivesse permanentemente cortado e como se isso fosse uma maneira de fazer sentir a sombra da morte a pairar; a construção altamente elíptica, não só da narrativa mas também de toda a planificação, como se a comunicação entre acções e planos fosse algo de doloroso e regido por regras secretas e clandestinas; e finalmente, o som, um fantástico trabalho de som, verdadeiramente uma mise-en-scène à parte, que tanto cola à imagem como a abandona, que tanto a acaricia como a envolve para a engolir - o som, em Ossos, é a morte a trabalhar nos interstícios.

LMO

domingo, 31 de dezembro de 2023

King of New York, Abel Ferrara, 1990

 


I'm not your problem. I'm just a businessman”

A obra de Abel Ferrara não é só isso, claro, e até cada vez menos o é, sobretudo a partir desta última década em que se radicou em Roma, mas convém não esquecer que ser “um cineasta de Nova Iorque” é uma das facetas importantes do seu trabalho. E dizer “um cineasta de Nova Iorque” significa, sobretudo, dizer, “um cineasta da história de Nova Iorque”. Entre Driller Killer (1976), um filme feito no encalço simbólico de Taxi Driver, e 4.44 – Last Day on Earth (2011), que há cerca de dez anos representou uma despedida, deliberada e voluntária, àquela cidade (foi depois dele que Ferrara se transplantou para a Europa), os filmes de Ferrara foram contando, periodicamente, o que foi acontecendo a Nova Iorque.

Sendo certo que falar do que foi acontecendo a Nova Iorque não significa apenas falar de uma cidade, mas de toda a América e, fatalmente, de todo o mundo ou de uma vasta e ocidental parte dele. King of New York é hoje porventura um filme mais facilmente localizável no tempo do que era na altura em que estreou. 1990, final de uma década marcada pelas presidências de Ronald Reagan, pela sacralização das políticas economicamente liberais, pela entronização enquanto figura heróica dos tempos modernos do “yuppy”, do “empreendedor”, do “businessman”; e mais localmente, no que a Nova Iorque diz respeito, da passagem da cidade “marginal” dos anos 70, viveiro artístico onde era possível sobreviver sem muito dinheiro, ao “playground” para ricos, gentrificado, em que a cidade começava a transformar-se (numa transformação acelerada pela eleição de Giuliani como “mayor” apenas quatro depois da estreia de King of New York, em 1994).

Honni soit qui mal y pense, também o “gangster” protagonista do filme de Ferrara, esse estranhíssimo e complicadíssimo Frank White a que Christopher Walken dá corpo e evanescência, acredita que tornar-se “mayor” de Nova Iorque é o passo em frente natural para as suas actividades de “businessman” da sombra e do submundo. A diluição das fronteiras entre a “sombra” (das actividades mafiosas) e a “luz” (dos negócios legítimos) é, obviamente, e de várias maneiras, um dos temas que cruzam o filme de Ferrara, e nesse sentido ele fica surpreendentemente próximo de outro filme estreado em 1990, o Godfather Part III de Coppola, que também tinha muito a dizer sobre essa diluição. E neste ponto, e já agora, um segundo honni soit qui mal y pense para a pequena história de King of New York: num filme sobre os negócios chiaroscuro de Nova Iorque no final dos anos 80, pleno daqueles ambientes de opulência enjoativa (os hoteis de luxo, as festas cheias de pós sortidos), esse figurão entretanto tornado global e chamado Donald Trump não pode estar muito longe, pensamos nós enquanto vemos o filme; pois bem, não está mesmo, aquelas cenas no Hotel Plaza são mesmo filmadas no Hotel Plaza, na altura propriedade de Trump, que deixou a equipa de Ferrara instalar-se lá e filmar à vontade, sem cobrar um tostão, satisfeito com a publicidade gratuita e com a condição – ao que tudo indica, cumprida – de Christopher Walken aceitar posar para uma fotografia com a sua mulher de então, Ivana...

Mas voltemos – se é que saímos delas – à luz e à sombra. Na mais estranha das cenas de King of New York, quando Frank White vai visitar o mafioso asiático, vemos um trecho do Nosferatu de Murnau, e com isso Ferrara, que nunca foi propriamente um cineasta “cinéfilo” a semear citações e referências pelos seus filmes, diz tudo sobre a relação do seu protagonista com a luz e a sombra, que como o vampiro de Murnau se perderá igualmente na passagem de uma coisa à outra, da sombra para a luz (e, poderíamos dizer, também sobre a relação entre o “alto” e o “baixo”, entre as alturas dos últimos andares do Plaza onde White instala o seu quartel-general, e os subterrâneos, como os do metropolitano, por que tem um genuíno afecto – porque o metro é a “realidade”, face à “ficção” do luxo do Plaza? Simplificadamente, sim). Mas essa cena é importante ainda a outro nível. Tudo aquilo tem um ar razoavelmente incrível (um mafioso a projectar clássicos mudos no seu cinema particular), e propicia a única tirada realmente cómica de todo o filme (quando White se vai embora, o mafioso diz-lhe: “já te vais embora? Olha que a seguir vamos projectar o Frankenstein”). Ora, este mafioso que afinal é um cinéfilo, cuja verdadeira paixão está no cinema, cumpre a dissociação que também está no coração do filme – todos eles são apenas businessmen, como White verbaliza, com um sentido prático de missão que faz dos “negócios” uma mera utilidade. Exploram um sistema económico que se tornou favorável, mas isso é a profissão; o que eles são é outra coisa, cinéfilos como o asiático, beneméritos (White paga um hospital, mostrando bem como a lavagem de dinheiro e a lavagem da consciência são irmãs) como a personagem de Walken julga ser, ele que num monólogo frente a frente com o polícia de Victor Argo (os polícias, já agora, são os únicos para quem a dissociação é impossível, como se vê bem no longo discurso da personagem de David Caruso sobre os salários, sobre o facto de o lado do “bem” ser, nesta guerra interminável com o “mal”, o que nunca tem uma compensação financeira digna) explicita o sentido de justiça social, e até moral, que atribui ao seu trabalho (“nunca matei ninguém que não merecesse morrer”).

Vale a pena dizer que este nome, White, não é um acaso num filme que encena a multiplicidade étnica de Nova Iorque (os negros, os hispânicos, os asiáticos, os italianos) e que tem esse homem duplamente branco – na pele e no nome – no topo da pirâmide (cinco anos antes, no Year of the Dragon, Cimino também chamara White ao polícia racista que protagonizava o filme) – e que portanto também sobre estas questões o filme de Ferrara diz, ou faz ecoar, alguma coisa.

Mas, para terminar, atentemos naqueles que são os momentos mais belos (e mais prolongados, num filme que vive quase sempre de sacudidelas) de King of New York, a morte lenta de Frank White. Como noutras personagens de Ferrara – sobretudo as escritas por Nicholas St.John, mas não só elas: um caso evidente é o do Bad Lieutenant – esta maldade cria-lhes uma espécie de curto-circuito espiritual que só encontra redenção, redenção total, na relação com a morte. Como se uma entrega, crística, digamos, à morte, em paz e aceitação, fosse a esponja que absorvesse todos os seus pecados. A espécie de arrasto com que Ferrara filma a morte do seu protagonista tem a ver com isso; e mais uma vez a sensação com que o espectador fica é a de que ele não foi bem morto, ele, sobretudo, deixou-se morrer.

LMO