quinta-feira, 16 de abril de 2015

O Estranho Caso de Angélica



O Estranho Caso de Angélica é um filme sobre o encantador sorriso da morte. Ou sobre o encantador sorriso de uma morta, essa Angélica cujo “estranho caso” este filme de Oliveira narra. Aquele plano – que nada, até aí, prenunciara – em que a morta sorri ao fotógrafo Isaac através da objectiva da sua câmara, é das coisas mais ousadas que Oliveira filmou, toda a sua a vasta obra somada. Como o são outros planos, réplicas desse momento inicial em que a morte (ou a morta) começa a sorrir a Isaac, em que das fotografias penduradas no quarto do fotógrafo volta a saltar – em efeito especial tão simples como surpreendente – o mesmo sorriso. Só Isaac o vê, e mais ninguém, e sempre através dos aparatos fotográficos. O “estranho caso de Angélica” também é, portanto, o “estranho caso de Isaac”, o estranho caso de um homem da câmara de fotografar ou, aqui ainda vai dar ao mesmo, da câmara de filmar. O Estranho Caso de Angélica faz rimar a “câmara mortuária” com a “câmara fotográfica”, e fala de como a segunda abre um corredor que conduz à primeira. Deste mundo para outro, na mais “estranha” ligação. “De que fala ele? – Do cinema” – é um diálogo do Nouvelle Vague de Godard que apetece repetir a propósito de O Estranho Caso de Angélica. De que fala Oliveira? Do cinema. Não só do cinema, mas muito do cinema.

E de uma espécie de desejo de cinema: O Estranho Caso de Angélica é, de certa maneira, um filme vindo do passado, baseado num argumento que Oliveira escreveu no princípio dos anos 50, numa altura em que por vicissitudes várias estava impedido de filmar alguma coisa com as características e as exigências de uma história destas. Podemos facilmente imaginá-lo a escrever este argumento nesses anos, desejando, tal como Isaac (no filme, Ricardo Trepa, mais do que nunca a interpretar uma espécie de “duplo” do seu avô) que o cinema viesse irromper num mundo tristemente real, multiplicando-lhe os caminhos e as possibilidades, substituindo-o por um outro mundo. Quando tudo é feio, barulhento (aquela interrupção genial, quase buñueliana, dos camiões-cisterna que passam pela rua debaixo da janela de Isaac: o máximo realismo a volver-se em efeito de irrealidade) e ainda por cima está em crise (as conversas ao almoço, as pontes e os engenheiros, o mendigo que não desarma), como não compreender a atracção de Isaac (e a de Oliveira) por esse mundo de fadas e de sombras que está au-delá, num algures para cujo acesso o cinema é o instrumento mágico? Mágico e arcaico como no tempo dos pioneiros: um “efeito especial” rudimentar (ou seja: com o “efeito especial” tornado “efeito poético”), de inspiração que podia ter nascido em Méliès ou em Cocteau.

Depois, é um filme que evoca, ainda através dessa personagem do fotógrafo, o que parecem ser “revisitações” de alguns momentos da obra de Oliveira, do Douro à Caça e ao Acto da Primavera, estes dois últimos filmes que nos anos 50 Oliveira ainda não tinha feito (mas com que talvez já sonhasse), contudo extremamente “presentes” nas sequências em que Isaac fotografa, como documentarista se quisermos, os trabalhadores no campo. A esse real Oliveira contrapõe a mais desabrida e romântica ficção, nascida do sorriso de Angélica? É possível. Mas também é possível pensar, e é a hipótese que escolhemos, que O Estranho Caso de Angélica é (mais um) traço de união desses dois pólos, entre os quais o cinema de Oliveira nunca deixou de cirandar.

Em todo o caso, esse mundo antigo (o dos anos 50?) não está lá por acaso. Em muitos dos seus filmes, e por certo em vários dos seus maiores filmes, Manoel de Oliveira inventou um tempo e uma época, lançando códigos (de conduta social, de representação, de narração) que o senso comum daria por “desactualizados” ao confronto com aquilo a que o senso comum chama a “actualidade”. A tensão gerada por tal confronto nem sempre é o elemento essencial, mas por norma é um dado determinante, ao menos no modo como afasta os filmes de um naturalismo puramente mimético e “contemporâneo”. Isto adensou-se nos últimos anos – Belle Toujours, as Singularidades de uma Rapariga Loura, O Gebo e a Sombra – e O Estranho Caso de Angélica também é assim, dominado pelo “princípio da incerteza” cronológica. Quando tudo parece apontar para determinada (e passada) época, eis que o “nosso tempo” irrompe, quase como um arrepio. Aqui, o que parece dos anos 50 e o que parece do século XXI contamina-se mutuamente, e dá um mundo irreconhecível, um mundo em perda. Inevitavelmente, também é desta falta de reconhecimento que Isaac foge.


E o que é que ele faz lembrar que tenha sido feito em tempos recentes? Apenas La Frontière de l’Aube, de outro “arcaico”, Philippe Garrel, para quem o cinema também é uma porta de entrada para um mundo que se liberta do meramente “possível”, quer dizer, do tristemente “real”.

LMO