quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Memoirs of an Invisible Man


Memoirs of an Invisible Man é, em toda a sua obra, o filme de que John Carpenter mais mal diz. Mesmo para os seus grandes falhanços (grandes falhanços na bilheteira, entenda-se) do princípio dos anos 80, que o tempo tornou em “beautiful losers”, Carpenter só tem, regra geral, palavras de estima. Com este, que marcou um regresso aos grandes estúdios (a Warner Brothers) e pôs fim ao período de inactividade excepcionalmente longo (quatro anos) que se seguiu a They Live (batido depois pelo período entre Ghosts of Mars, de 2001, e The Ward, de 2010, descontando os dois episódios para a série de televisão Masters of Horror), com este filme, dizíamos, Carpenter não é nada meigo. Como se confere, por exemplo, na entrevista publicada no catálogo editado pela Cinemateca, onde Carpenter verbera as interferências constantes da sua estrela, Chevy Chase (não creditado como produtor mas, a julgar pelas palavras de Carpenter, com uma palavra determinante sobre os destinos do filme), e lamenta especialmente a imposição de uma narração em “off” com que nunca concordou (“detesto a voz ‘off’”).

É verdade, e arrumemos já com este assunto, que a voz “off” é banal, resquício de um tipo de cinema, e em particular de um tipo de comédia americana muito “anos 80”, muito “Saturday Night Live” e similares (que é o meio de onde emergiu Chevy Chase), muito verborreica, que tem pouco ou nada a ver com o cinema de John Carpenter. E que não acrescenta, de facto, nada de muito significativo ao filme, nem sequer à composição da personagem interpretada por Chase (que se chama Nick Halloway, num mais que certo trocadilho com a quase homófona palavra “hollow”, em português, “vazio”, “por preencher”). Mas é igualmente verdade que o filme não é danificado pela presença da voz “off” (esquecemo-nos dela rapidamente, e terminado o filme lembramo-nos de tudo menos da voz “off”), e que ela, até nas suas irrupções extemporâneas, dá uma outra dimensão ao conflito central do filme: a luta de um homem contra o seu apagamento. Podemos facilmente integrar a presença da sua voz no mesmo processo de “resistência”; assim como, a partir das palavras de Carpenter sobre a sua relação com Chase, se abre uma dimensão interessante, como que “comentadora” do próprio processo de feitura do filme. Chase queria sobressair, fazer filmes “mais sérios” (Carpenter dixit) do que as suas comédias habituais, e escolheu um filme sobre um homem invisível? Ironia, mas Chase não a quis levar até ao limite – e na intermitência (que às vezes parece um pouco aleatória) da sua visibilidade para o espectador (sendo certo que para as outras personagens ele é sempre invisível), no seu próprio desejo de não ser apagado, joga-se porventura um conflito entre a vedeta e o realizador. E assim é bem possível que Memoirs of an Invisible Man se converta inesperadamente naquele tipo de filmes que, como Jacques Rivette gosta de dizer, são em simultâneo “a reportagem da sua rodagem”.

Se este conflito parecerá anedótico, não deixa de ser um curiosíssimo eco do conflito narrativo do filme. Muita gente viu Memoirs of an Invisible Man como um filme, em última análise, sobre os efeitos especiais, sobre a imposição do “digital” e a sua lógica de apagamento do actor e do elemento humano. Certamente que sim, e nesse sentido ainda um prolongamento de They Live: é entre as grandes corporações e os grande poderes estatais, a CIA mais propriamente, que se jogam os infortúnios de Nick Halloway, ele próprio saído de um universo (um pouco “yuppie”, de um elitismo vulgar, passe o pleonasmo) que Carpenter nunca tratou muito bem (vide o tratamento inicial da personagem, e depois o dos seus supostos “amigos”, que com a excepção de Daryl Hannah são uns perfeitos imbecis). Mas a esse respeito seria interessante assinalar que Carpenter, mesmo para comentar o “digital”, se serve dele “a contrario”: pensando que o digital, por norma, serve para acrescentar alguma coisa à imagem, depositar-lhe alguma coisa que não estava lá ou transformar os corpos dos actores, o que vemos em Memoirs of an Invisible Man é o digital usado como subtracção, como algo que devia lá estar (na imagem) mas não está. É o próprio digital que se torna “invisível”.

E por isso, se se tornam notados (cf.  ainda a entrevista do Catálogo) os dispositivos ópticos que forçam a revelação do corpo de Halloway (em espécie de metáfora do cinema, que como diz Carpenter “deve fazer aparecer o invisível”), mais notada ainda devia ser a belíssima sequência em que Daryl Hannah, usando rudimentares processos (os batons, cremes e pós de beleza), consegue criar algum tipo de permanência ao rosto de Halloway. Se o digital tornou tudo invisível, e se fez ele próprio invisível, é a maquilhagem (o mais velho truque, a mais velha ilusão do mundo: o teatro) que salva o rosto da personagem – e se o rosto é a porta da entrada para a alma esse salvamento é tudo o que Chevy Chase precisa para que Hannah, apaixonando-se, lhe salve também a alma. Talvez seja o que de mais profundo e mais belo Memoirs of an Invisible Man contém em termos de discurso sobre o “digital” e sobre o cinema.


John Carpenter, “cineasta analógico num mundo digital”: este é o filme que mais validade dá a esta célebre expressão.

LMO