terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Todas as cores do mundo


OS BRAVOS NÃO TÊM DESCANSO
De Alain Guiraudie

“Os Bravos Não Têm Descanso” é a primeira longa-metragem de Alain Guiraudie, cineasta francês nascido em 1964 que já se tinha feito notar com um punhado de curtas e médias metragens. Guiraudie chegou relativamente tarde ao cinema, e começou a filmar já com perto de quarenta anos. Os seus trabalhos prévios indicavam uma sensibilidade capaz de abordar uma determinada tradição realista do cinema francês com originalidade e vigor – e ancorada num fundo “político”, quanto mais não seja pela reivindicação de um estatuto de “classe” (os “proletários”, em terminologia antiga). É preciso dizer que Guiraudie reune em si o tipo de “contradições” (por assim dizer) que costuma dar cocktails interessantes: é comunista, vem duma família católica de direita, é homossexual, foi operário…

Não é indispensável conhecer este “background” para se ficar entusiasmado com este inqualificável “Os Bravos Não Têm Descanso”, mesmo que, sabendo dele, haja a tentação de o usar para explicar (ou tentar explicar) alguns dos seus mistérios. Aparentemente é um filme lúdico, em toda a sua plenitude – mas com ironia ou sem ela é a partir daí que Guiraudie defende o seu “fundo político”: “é um acto político, defender o direito a não estar permanentemente numa relação de rentabilidade”. É com, mais certeza (e mais evidência), um filme “regionalista”, no sentido em que não se sai duma determinada região (o Sudoeste de França), com os seus campos, aldeias e lugarejos, mas se filma o lugar como se ele pudesse conter o mundo inteiro, como se ele fosse “todo o mundo” – e o espectador descobrirá como isto é literal, ao encontrar terreolas com nomes como Buenozères, Glasgaud, Ongue Congue, Manfis (Memphis…), e por aí fora…

Bizarro? Ainda não vimos nada. “Os Bravos Não Têm Descanso”, com este título (“Pas de Repos pour les Braves”, no original) que parece saido de um filme de guerra americano dos anos 50 sobre aventuras de fuzileiros em Guadalcanal (ou coisa parecida), é um pequeno prodígio de tapeçaria “inter-genérica”: ora policial (com “traficantes de bolinhas vermelhas” e tudo), ora road-movie, ora filme de zombies, ora western, ora drama psicanalítico (muitas aspas, neste último). Sabe-se que há um massacre numa aldeia, e que o rapaz que o cometeu passará o filme a ser perseguido por uma das suas vítimas – mas poderemos ter alguma certeza sobre isso? “Os Bravos Não Têm Descanso” possui uma narrativa que dá a volta completa aos chamados “nexos de causalidade”, o que quer dizer que é sobretudo uma grande aventura “mental”. Há grandes sequências oníricas, mas estas têm uma integração perfeitamente orgânica na estrutura do filme, sem a sinalização “clássica” do onirismo – é pelo cinema que tudo existe no mesmo plano: por exemplo um avião que não chega a levantar voo (mas que, acompanhado num travelling, faz efectivamente uma “viagem”) e que leva o protagonista a um pequeno entreposto no meio de nada (que é isto? “Only Angels Have Wings” nos arredores de Toulouse?). Não se está assim tão longe de outro entusiasmante novo-velho do actual panorama francês, Eugene Green, nestas cenas sobre o poder “concretizador” (de “tornar concreto”) do cinema.

E depois, há uma sensualidade luxuriante. Reparem nas cores – as dos carros, as das t-shirts das personagens, as das bolas das mesas de snooker. Guiraudie deleita-se a brincar aos falsos naturalistas, e nós com ele. A propósito, o último plano, o longo último plano que acompanha o genérico final: já viram um plano assim?

LMO